Por Eduardo Fernandes.
E se Alejandro Jodorowski tivesse dirigido Tron?
Na semana passada, talvez você tenha visto imagens especulando como seria o filme Tron (1982), se fosse concebido pelo cineasta Alejandro Jodorowski.
O material foi criado pelo fotógrafo Rob Sheridan, que aproveitou seu momento no holofote para criar outras paródias, igualmente interessantes.
A "novidade" aqui é que Sheridan usou programas de inteligência artificial para desenhar as cenas. Isso deixa (ainda mais) claro que entramos numa nova fase da prática da dissolução da autoria, a fase da automatização.
Desde o século passado, autores como Roland Bartes, entre muitos outros, nos informam que as obras podem ir muito além das intenções e até do contexto social de seus autores. Na época da machine learning, os criadores foram ainda mais dessacralizados: assim como todos nós, cumprem a "função" de ser mais um veículo pelo qual padrões são detectados e reproduzidos.
Para entender o que quero dizer, é preciso, antes, reconhecer algumas das práticas de autoria fluida da nossa época.
- Franquias - uma corporação é autorizada a desenvolver (industrialmente) histórias, personagens e universos de um autor. Então, uma "obra" vira "propriedade intelectual".
- Fan-fiction - é o equivalente ao open source autoral. Fãs se mobilizam (sem ajuda corporativa) para desenvolver ou ressignificar uma obra. Geralmente, são até perseguidos pelos donos dos direitos autorais.
- Covers - Quando, por exemplo, Jimmy Hendrix tocava Bob Dylan, imprimia sua identidade à canção escolhida, se apropriava da canção.
- Troca de gêneros (style sweep) - Por exemplo, Postmodern Jukebox tocando Radiohead, mas com clichês do Jazz. A graça está em encontrar compatibilidades em universos aparentemente distintos. Aqui já há um indício de que o estilo é reconhecido como padrões. Dados.
- Imitação - prática popular ancestral de exagerar certas características de uma pessoa ou obra para recriá-las em outros contextos. Novamente, disseca-se uma criação para chegar aos dados, seus elementos fundamentais, passíveis de reprodução.
Assim, o que Rob Sheridan e alguns outros canais do YouTube fazem é processamento de dados. Human machine learning. Descobrem padrões. A seguir, tentam repeti-los e mudar seus contextos.
Será que Alejandro Jodorowsky seguiria seus próprios clichês ao recriar Tron? Provelmente não. Mas e daí? Os clichês viraram um gênero em si. Os dados também se tornam propriedade intelectual.
Porém, o estilo de um autor pode variar ao longo dos anos, dos contextos e das tecnologias usadas para a criação. E, obviamente, isso já foi percebido.
No YouTube, é possível encontrar canais que fazem verdadeiras viagens no tempo dentro de um mesmo autor. Por exemplo, como seria uma música atual do Metallica se fosse tocada com a produção de álbuns mais antigos. E por aí vai. Não é só troca de gêneros musicais. É um deslocamento temporal e tecnológico.
E se tudo virasse mesmo franquia? #
Agora, deixe-me evocar um encosto capitalista e psicografar o seguinte.
Em 2018, eu já usei o Metallica como exemplo para criar um plano de ação corporativo para bandas longevas. Uma vez que elas já se tornaram empresas, por que não se assumirem como franquias?
Quer dizer, os fundadores (Mr. Ulrich e Mr. Hetfield) poderiam escolher músicos treinados para desenvolver perfeitamente os clichês de cada época da banda.
Você gosta do Metallica do álbum Master of Puppets? Siga esse "branch", esse ramo, como se diria na área de programação. Gosta de outra época? Siga outro.
Em vez de reclamar que o artista "perdeu a mão", os fãs passariam a considerá-lo como um gerente de produtos. Inclusive, o músico poderia até vender seus clichês para a Disney e iriam, sei lá, trabalhar com filantropia.
Obviamente, estou brincando. Mas se funciona no cinema, por que não na música?
Automatização #
Por isso que a brincadeira de Rob Sheridan é interessante: ela automatiza o processo. Por que esperar que J.J. Abrams salve Star Wars? Mais fácil usar um computador.
Parece um horror? É. E seria pior se a inteligência artificial descambasse ainda mais para fake news e criminalidade. Mas, vai saber, podem até surgir criações interessantes. Quem sou eu para garantir?
No fundo, é mais um gênero de criação artística para competir pela nossa atenção. Quem gosta de desenvolvimento dos clichês, fique com as franquias. Quem gosta de tentativa-erro, dúvida e possíveis degenerações, fique com os artistas orgânicos mesmo. Ou use os dois tipos. Ou vá dormir um pouco.
Que época.
Mais sobre o assunto #
- Sobre detectar padrões e reproduzi-los, confira esse documentário sobre o incrível Van Gogh chinês.
- Considerado o primeiro vídeo ensaio da história, F for Fake, de Orson Welles, também trata do trabalho dos imitadores e ilusionistas. Trailer aqui.
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