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Quem ainda quer escrever na Internet?

Por Eduardo Fernandes.

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Imagem: MidJourney.

Escrever para a internet era melhor no começo dos anos 2000, certo? Nah. Eu é que tinha 20 anos naquela época.

Esse é mais um exemplo da chamada Lei Lebowitz, “sistematizada” pela comediante norte-americana Fran Lebowitz. Segundo ela, nossas descrições do passado são diretamente influenciadas pela idade.

Se, aos 20, fomos energéticos e dinâmicos, tendemos a considerar o ambiente como… energético e dinâmico. Especialmente quando não estamos mais tão empolgados.

Ainda assim, a produção de conteúdo online era mesmo diferente há 15 anos. Ou até há 5. Na verdade, já deve ter mudado mais um pouco, desde que você começou a ler este texto.

O problema é que as mudanças não são tão diversificadas quanto parecem. Elas orbitam em torno de um só buraco negro, o do capitalismo. Que, você sabe, não é só um sistema econômico. É uma construção civilizatória, com valores, expectativas, esperanças e medos muito particulares.

No começo dos anos 2000, a internet foi (um tanto ingenuamente) associada ao ativismo de esquerda. Era a época das raves, da revista Mondo 2000, da realidade virtual, de Hakim Bey, da Operação Mindfuck, da fanzinagem e dos blogs.

Pouquíssimos anos depois, a maré pendeu para o empreendedorismo, revista Wired, exploração da “cauda longa”, e-commerce onipresente e o desejo de ficar rico rapidamente. Começamos a aceitar a ideia de produzir conteúdo on-line por dinheiro, não apenas para compartilhar conhecimento.

Em 2012, as redes sociais se consolidaram. E, aos poucos, as técnicas de humor e ativismo da primeira fase da internet foram incorporadas pela extrema-direita, virando QAnon, fake news, cancelamento, entre outros fenômenos. A monetização virou quase um pressuposto da atividade online. Tudo é de graça, desde que seja pago com dados ou atenção.

Em 2023, as metáforas vigentes são as do burn out e da fadiga. Escrever na Internet virou uma atividade não só desgastante como até perigosa.

A sensação é de desconfiança generalizada: será que o que leio é verdade? Será que foi produzido por um humano ou IA? Esse site está querendo me transformar num extremista? Qual é a conspiração vigente nesta semana?

Tanta gente disputa (consciente ou inconscientemente) um lugar ao SEO, que tivemos que delegar a curadoria de conteúdo para algoritmos e a sua produção para a inteligência artificial.

Migramos a complexidade da produção e do consumo de conteúdo. Da tecnologia para a psicologia. Se antes era mais difícil configurar um blog e um feed de RSS, hoje é mais desgastante manter a sanidade ao usar redes sociais. O preço da conveniência é sempre alto.

Assim que um autor começa suas atividades na internet, automaticamente surgem os incentivos para profissionalizá-las. Ele recebe todo tipo de notificações de plataformas, tentando convencê-lo a se transformar numa máquina de gerenciamento de conteúdo e um empreendimento de mídia. É como se uma criança saísse para vender limonada na rua e, de repente, se percebesse funcionária da Ambev.

O autor começa a ouvir palavras como “consistência” – como se ele fosse uma espécie de sopa primordial. Descobre que precisa formar e “crescer” uma audiência. Entra num loop de ansiedade de comparação de números de engajamento. “Mas o Casimiro tem milhões de seguidores. Nem meu cachorro me segue”.

Desenvolvemos uma mentalidade contraditória: querer ser uma corporação num micro nicho.

A seguir, o criador ganha um novo instrumento de exortação e autoflagelação, a dashboard. É um painel cheio de números que ninguém explica propriamente. De onde saem? Como são tabulados?

De repente, somos induzidos a acreditar que entendemos de estatísticas. Quem precisa de universidade para interpretá-las? A narrativa é muito mais simples: corra, faça aqueles números aumentarem e não deixe que eles caiam.

Assim, ao apertar o botão publicar, é como se o escritor fosse automaticamente sugado para o universo do filme Brazil, de Terry Gilliam.

Mas, se conseguir sobreviver à burocracia, se der a sorte de não ficar famoso demais, há chances de que consiga ter conversas interessantes com seus leitores / cocriadores. Poderá formar algo parecido como uma comunidade.

Ou, pelo menos, terá algumas novas relações parassociais. E, para uma boa parte de nós, introvertidos, traumatizados, desgastados pela vida, isso poderá ser um alívio. Ou até uma estratégia de sobrevivência. Quem sou eu para criticar.

Ainda assim, será necessária uma imensa disciplina para resistir à doutrinação da narrativa do “crescimento”. É todo o discurso gamificado que as plataformas tentam nos empurrar goela abaixo para forçar autores a aumentar seus números e trabalhar como escravos.

Nesse “jogo”, o autor terá que atingir certos níveis de popularidade para destravar funcionalidades, monetizar seu conteúdo ou simplesmente ter estatísticas altas o suficiente para ser levado a sério entre seus pares.

Sem estatísticas favoráveis, muitas empresas sequer respondem e-mails, entrevistados ignoram convites, etc. Isso porque, de repente, todo mundo pressupõe que entende as tendências do mercado de mídia.

A suposta facilidade de publicação das plataformas vem acompanhada de muitos trabalhos “invisíveis”: classificar textos para SEO, buscar fotos em formatos adequados para divulgação nas redes sociais (e cuidar dos direitos autorais), criar thumbnails atraentes, etc., etc.

E, se o pobre autor realmente viralizar, terá que tolerar níveis cada vez mais extenuantes de autocensura e paranoia. Tudo o que disser poderá ser cortado, tirado do contexto e distorcido. Seu passado poderá ser investigado. Ele precisará lidar com a democratização do paparazzi, as câmeras dos celulares. Além de aprender a pensar como um marketeiro: “sou patrocinado pela marca X. E se alguém me vir consumindo a Y?”

Quem quer realmente viver desse jeito?

Enfim, parece que não, mas escrever para a internet pode ser interessante. A possibilidade de serializar, linkar partes do material, reutilizar conteúdo, usar áudio e vídeo, ASCII art, imagens, de interagir diretamente com seu público cocriador, tudo isso abriu portas e mais portas para a criatividade. E ainda estamos apenas engatinhando na relação entre texto e tecnologias digitais.

Mas, quando associamos o sistema operacional capitalista à atividade da escrita, obviamente, ela se tornará industrial. Terá que considerar periodicidade, quantidades de produção, nichos de mercado e profissionalismo. A criação vira conteúdo.

Algumas pessoas terão estômago para produzir e consumir sob essa lógica. Outras não. Algumas tentarão conciliar as coisas, sempre com o risco de cair em alguma espécie de greenwashing intelectual.

Faz parte. Não somos a primeira civilização a tentar escrever em condições adversas.

Publicado originalmente na Revista Parêntese.