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Ruptura sem ruptura

Por Eduardo Fernandes.

Transcrição #

Se você frequenta os principais sites norte-americanos sobre tecnologia, provavelmente deve ter ouvido falar da elogiadíssima nova série Severance (ou Ruptura), da Apple TV+.

Boa parte dos episódios são dirigidos pelo comediante Ben Stiller. Mas, ainda que o humor apareça eventualmente, trata-se de (mais) uma história de mistério, cheia de horror psicológico e ficção científica retrô.

De novo?

Pois é.

A história mostra o cotidiano dos funcionários de uma mega corporação, chamada Lumon. Eles decidiram implementar um chip em seus cérebros, que divide suas memórias em duas partes, a pessoal e a profissional.

Ou seja: quando a pessoa chega ao escritório, se esquece completamente de quem ela é lá fora. No fim do expediente, se esquece de tudo o que ela é e o que faz na empresa. É como se existissem duas pessoas habitando num mesmo corpo, os “innies” (funcionários) e os “outties” (que vivem fora da Lumon).

Cada personagem tem lá o seu motivo para querer passar 8 horas por dia longe de si mesmo. Mas os innies não sabem disso e se sentem angustiados por terem que restringir suas vidas apenas às regras absurdas e recompensas infantis que recebem na empresa.

Só essa dinâmica já daria uma excelente história para a série. Mas, não se esqueça, ela mesma é um empreendimento norte-americano, patrocinado por uma mega corporação que tem que agradar megainvestidores.

Então, ao longo dos capítulos, percebemos que a Lumon não é apenas uma empresa absurda, mas uma espécie de culto, cercado de segredos. Mesmo os innies não sabem o que fazem lá dentro. Vivem sob vigilância estrita e nem sequer podem visitar outros ambientes da companhia.

Essa seria mais uma chance para Ruptura se diferenciar do mar de séries conspiratórias, que tentam segurar a atenção do público prometendo resolver mistérios e explicar coisas inexplicáveis. Os autores poderiam continuar a brincar com a história, radicalizando a ideia de alienação: não só o funcionário ignora o resultado do seu trabalho, ele não deve saber o que faz.

Mas Ruptura prefere não se arriscar e segue pelo caminho das conspirações. E, nisso, é bem competente. Mas também não deixa de ser um pastiche:

  1. Faz uma crítica social meio hipster, sem muita atenção ao conflito de classes, apenas sugerindo uma corporação maluca e criminosa.
  2. Usa visual de ficção científica retrô, cheia de piscadelas para quarentões nostálgicos e fãs de cinema de arte (por exemplo, a direção de arte é baseada em filmes de Jacques Tati).
  3. Recicla momentos absurdos que lembram Brazil (o filme de Terry Gilliam), Lost e Twin Peaks.
  4. Os atores também foram escolhidos a dedo para atrair certa nostalgia. Nomes como Patricia Arquette, John Turturro, Christopher Walken e Adam Scott.

De novo, Ruptura não é uma série ruim. Mas não é exatamente um trabalho de crítica social, como alguns comentaristas vêm tentado nos convencer.

Ruptura atende o mesmo nicho que Cobra Kay e até Station Eleven: indies quarentões, que até gostam de cinema de arte, mas já não têm mais tanta paciência para experimentalismo. Que gostam de sentir que seu entretenimento vem com um sabor de crítica social. Mas que ainda precisam manter-se presos à super estimulação sensorial do suspense, crime e nostalgia.

Esse é um entretenimento essencialmente ideológico, bastante norte-americano, que permeia até mesmo a cobertura jornalística que se faz de guerras. Depois nos perguntamos porque vivemos num mundo cheio de fake news, teorias conspiratórias, políticos e empresários salvacionistas. Essa linguagem do entretenimento praticamente virou nosso sistema operacional.

Cada um goste do que quiser. E não há problemas em ser quarentão nostálgico. Mas não é só porque você critica corporações que consegue deixar de pensar e agir corporativamente.


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