Por Eduardo Fernandes.
Sem permissão (permissionless, em inglês) é uma das expressões favoritas dos entusiastas da web3. Talvez só perca para “descentralização”. São palavras fortes, metáforas fáceis de vender num mundo formatado pelo modernismo, ainda tão (inconscientemente) positivista.
Associamos esses termos com a ideia de liberdade individual, ausência de burocracia, com o desejo de que ninguém nos controle. Não importa o quão tecnológicos nos tornemos, ainda somos abduzidos por esses fantasmas culturais simplistas, usados tantas vezes para justificar genocídios e ditaduras.
É interessante que a metáfora da liberdade individual simplista tenha sobrevivido aos ataques de tantos pensadores, ao longo dos anos. Só nos últimos séculos, só no Ocidente, tivemos Freud, os existencialistas e tantos outros, nos alertando para o fato de que liberdade pode ser um fardo e, no mínimo, uma ilusão.
Mas qual seria sua alternativa? Delegar o controle das nossas vidas para políticos, monopolistas, processos jurídicos e oligarquias? Nem pensar. Onde é que eu assino para me livrar disso? Nesse outro contrato que, logo descobrimos, nos leva a mais servidão.
Meu objetivo aqui não é criticar as tecnologias da web3. Na verdade, nem cheguei a falar sobre elas. Nesse momento, estou apenas maravilhado com a capacidade de mutação desse meme, desse vírus ideológico da cultura ocidental, o sonho da ausência de regras e restrições.
Quantas “cepas discursivas” tentam esconder que, vivendo num planeta, em sociedade, possuindo um corpo, precisamos pedir permissões infinitamente, a todo momento? Negociação é o que fazemos. Até para nascer precisamos de autorização (caso contrário, seríamos abortados).
Então, como ainda caímos na armadilha de acreditar em ideias vagas e abstratas como permissionless? Como não caímos na gargalhada ao ouvi-las? Como nem sentimos vergonha de usá-las, mesmo como metáfora para processos tecnológicos bastante complexos?
Se você usa eletricidade, precisa da permissão de um Estado. Para montar computadores e minerar criptomoedas, precisa se adaptar aos sistemas globais de produção e venda de equipamentos. Para usar tecnologias, precisa de inúmeros consensos técnicos. Permissões, permissões e mais permissões.
Assim, metáforas como permissionless são um tanto ridículas. Mas, tudo bem, não estou achando que sou Sócrates aqui. Definições superficiais são usadas porque têm poder de engajamento, de mobilização. Essa é a ideia. Marketing.
Minhas perguntas são estúpidas, como sempre: por que tanta aversão a pedir permissão? Por que somos incapazes de acreditar em legitimidade, em acordos? Se você realmente quer defender alguma liberdade, por que aceita usar metáforas manipuladoras e enganosas? Como pensar em construir comunidades sem um respeito (e apreço) por pedir permissões?
É certo que a história da política não vem sendo muito generosa conosco, por isso o sonho de fugir das regras. Mas, por favor, me aponte um só ditador, ou processo ditatorial, que não começou com alguém (ou um grupo) tentando se proclamar como defensor da liberdade.
Faça o que eu digo e nunca mais precisará pedir permissão. Estou sabendo.
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