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Sinead O’Connor: o que a morte não leva

Por Eduardo Fernandes.

Talvez você já saiba que Sinead O’Connor morreu. A notícia me fez pensar sobre como as relações parassociais mudaram nas últimas décadas.

Durante o auge da fama da cantora, eu era adolescente. Manjava pouco de inglês. Não usava internet. Então, surgia aquele rosto na TV, com olhos enormes, lábios pequenos. Uma voz frágil, mas cheia de raiva. O cabelo raspado. Dançando com movimentos duros.

Nos anos 80 e 90 sabíamos menos da vida dos artistas. Você teria que realmente pesquisar, investir tempo pra descobrir detalhes. Relações parassociais baseadas em informação custavam caro.

Mas você sempre poderia imaginar, criar sua própria Sinead O’Connor. Estranhamente, era algo mais democrático: fãs não se viam tão ameaçados pela personalidade dos artistas. Poderiam projetá-las. Não precisavam “checar os antecedentes criminais” da pessoa constantemente.

Assim, mesmo sem entender direito os contextos das letras da cantora, mesmo sem conhecer sua história marcada pelo abuso, era muito fácil se conectar com a dor de Sinead O’Connor. Era só olhar pros seus olhos: você sabia que algo ali não ia bem. Entendia que ela era um caso de alguém que colidiu com o sucesso.

Por exemplo, no vídeo abaixo, ela se apresenta pela primeira vez na TV, no programa de David Letterman.

O constrangimento é visível. Nos bastidores, o tiozão produtor, segurando as mãos da garota, que quase fugia do sofá. Noutro momento, um homem tenta abraçá-la na poltrona.

O’Connor entra no palco com um andar rígido. A jaqueta larga parece servir de armadura, protegendo a garota do ambiente. A seguir, entrega emoções ambivalentes ao cantar. Uma nota soa sublime e frágil. Ela fecha os olhos. Em seguida, solta uma espécie de grito, com maxilar duro e punho em riste. Não é uma performance linear. É crítica. É automotivação. Tudo junto.

A música parece lhe dar três minutos de alívio dos seus 15 de fama. No meio de tantos homens de mídia, impondo suas agendas, ela não sabe o que é vergonha, ela não sente dor, ela sente o fogo, ela conhece Mandinka.

De alguma forma, pra mim, essa conexão emocional era o suficiente. Eu não precisava saber o que significava Mandinka. Intuitivamente, estava claro que era alguém sobrevivendo aos prazeres e dores da sua própria vida. Tentando se automotivar. Assim como eu, do lado de cá.

Os olhos enormes, a expressão de O’Connor era ainda mais ativista do que suas letras. Mesmo num ato como rasgar a foto do Papa, a catarse por trás da provocação era ainda maior. Mesmo que aquilo fosse planejado pelo departamento de marketing, o rosto da cantora entregava algum tipo de verdade profunda. Além da política, havia um protesto essencialmente humano.

Esse tipo de relação parassocial furou as bolhas da mídia, dos idiomas e até mesmo da arte. Ela, Irlandesa, mulher, outro universo. Eu, periferia de São Paulo. A conexão mais improvável.

A música de Sinead O’Connor foi aquilo que nos aproximou. Mas, na verdade, esse aspecto foi superficial. Não continuei acompanhando a carreira musical da cantora. Mas aqueles olhos, aquelas expressões, de alguma forma, ficaram na memória.

Como o reino das relações parassociais é maluco.


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