Skip to main content
eduf.me

Smart newsletter

Smart newsletter

Por Eduardo Fernandes.

Maxwell Smart, da série Agente 86, consultando seu smart watch.

Contratos, telefones, roupas, parece que, hoje em dia, tudo precisa ser “smart”. Daí que, nessa semana, pensei em escrever sobre a nossa atual obsessão com essa palavra. Em que contexto ela começou a ser usada? Quando foi atrelada a produtos e tecnologias?

Para evocar o espírito do absurdo, eu citaria a clássica série de TV Agente 86 (“Get Smart”, em inglês), dos anos 1960. Era uma paródia dos filmes de espionagem. O protagonista chamava-se Maxwell Smart. E, de James Bond, só tinha a autoconfiança. Na prática, era um tapado, tentando desvendar mistérios e usar gadgets estranhos, como um telefone-sapato.

Daí, aconteceu a Internet. Alguém foi mais smart que eu e escreveu o texto dois anos antes.

Mas, enfim, sobre a palavra, em si, teria surgido do alemão, “smarta”, “doloroso” — há cerca de 2 mil anos. No Inglês antigo, há registros de “smeart”, que seria algo como “ferramenta afiada que causa dor”. A partir de 1300, ganhou uma conotação paralela: coisa ou pessoa rápida e ativa. Só em meados do século 20 é que começou a ser preferencialmente associada à inteligência.

É mais um caso de inversão de significado: no começo, “smart” era induzir, depois virou evitar dor.

Interessante. Até porque esperteza é algo relativo — em geral, depende de prejudicar os outros. No Brasil, até, mantemos uma saudável desconfiança da palavra: “você é um espertinho”. Ou, em São Paulo, quando se diz “experto”, com sotaque carioca, para indicar falcatrua (e bairrismo).

Smartização do mundo #

A atual obsessão com a palavra “smart” teria começado nos anos 1990. Então, ela passou a significar, virtualmente, qualquer coisa: mais conveniência, mais rapidez, mais funcionalidades, menos passos para completar uma tarefa.

“Smart” virou uma espécie de medalha: é pressuposto que esperto seja bom e desejável. Você pode ser até considerado um tanto idiota e atrasado, caso não possua algo “smart”. Isso implica que as técnicas do passado eram burras. E que o tempo é linear: ou você anda para a frente ou está em marcha-ré — sem nuances.

Parece que estou implicando. Mas palavras vagas ganharam uma força mobilizadora incrível a partir do advento do neoliberalismo. Enquanto os teóricos diziam desconfiar das grandes narrativas (como socialismo, comunismo, História), as “pequenas” tomaram o poder.

E, agora, começa a ficar evidente que a medalha “smart” é um símbolo da decadência entorpecida capitalista.

Como explicá-la? Hmmm. Com outra referência velha.

Caindo do penhasco #

Talvez você conheça aquele desenho, Papa Léguas. Seu arqui-inimigo, Coiote, se achava esperto. Planejava e criava tecnologias para capturar o pássaro. No papel, tudo parecia incrivelmente funcional. Mas, na prática, o Coiote sempre acabava despencando do penhasco.

O mais interessante é que, antes de se esborrachar, sempre havia uma pausa. Esbugalhado, o Coiote olhava para o espectador. Era como se o tempo parasse por um segundo e nós tivéssemos esse momento de intimidade. Coiote percebia que não era tão “smart” assim e nos pedia um lance de empatia.

Coiote, do Papa Léguas, antes de cair do despenhadeiro.

O momento íntimo que o Coiote tinha conosco.

Vivendo numa sociedade como a nossa, nem sempre temos esse privilégio, esse tempo para pensar. Ainda que continuamente percebamos a fragilidade da lógica smart, tentamos hackear a queda: compramos um tíquete de avião no programa de milhagem, ligamos para a Amazon, torcendo para que entregue uma smart rede, antes de chegarmos ao chão. Pulamos de uma esperteza para outra.

É exatamente isso que dava graça aos episódios de Agente 86: Maxwell Smart realmente acreditava na sua inteligência e na eficácia dos seus aparelhos. Mas vivia protegido, em delusão: quem resolvia os problemas era a Agente 99 (ou a sorte). Maxwell posava de hétero top, mas sempre acabava prendendo o nariz na porta. E olhando para os lados para ver se alguém percebeu.

Agente 86 e 99.

Maxwell e a verdadeira heroína da série, Agente 99.

Não sei de você, mas, às vezes, acho que parte dos nossos produtos espertos parecem ter saído do Controle — digo, da agência norte-americana de espionagem do seriado.

São interessantes, úteis e tal. Mas prometem muito mais do que entregam. E não precisamos, realmente, da maioria deles. Digo isso porque acabei de testar mais um serviço que se dizia “do futuro”. Na hora de ativá-lo, “encoiotou” e caiu do penhasco. E a empresa só foi capaz de me dizer: “desculpe por isso, chefe”.

Há! O velho truque das narrativas que parecem inofensivas.


Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.