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Só o solucionismo salva

Por Eduardo Fernandes.

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Transcrição do episódio #

De modo geral, a política, ou, pelo menos, a maneira como ela foi debatida no Ocidente parte de dois pressupostos:

  1. Não podemos confiar uns nos outros. Se nos deixarem soltos, vamos nos matar.
  2. Ainda assim, a racionalidade, os esquemas intelectuais, os planejamentos conseguem resolver essa situação. Basta achar o raciocínio certo, a pessoa certa para ter as melhores ideias.

Por um lado, há o viés que enfatiza a paranoia, em detrimento da colaboração, empatia e compaixão. Por outro, há o viés esperançoso, que julga que a racionalidade daria conta das paixões e maluquices humanas. No pensamento político ocidental, você encontrará versões mais explícitas ou mais diluídas desses pontos-de-vista.

Por explícitas, me refiro a visões como as de Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. O filósofo inglês acreditava que, antes do Estado surgir, vivíamos numa situação de violência extrema, todos contra todos.

Já as visões mais diluídas são mais comuns e aparecem não só entre filósofos, mas também entre legisladores e governantes. Por exemplo, nas diversas camadas de instituições criadas ao longo da história. De planos econômicos até esquemas como o dos três poderes, que, supostamente, deveriam corrigir uns aos outros, criando um sistema balanceado de governo.

A crença na isenção e confiabilidade das previsões e esquemas mentais é um dos nossos hábitos mentais mais profundos. Lembre-se dos esquemas geopolíticos e estratégicos de Henry Kissinger, da Guerra Fria, das agências de inteligência, como a CIA e a KGB e até mesmo dos espalhadores de fake news de hoje em dia. São camadas cada vez mais refinadas de gente pensando ser mais esperta que a outra. Desconfiando de tudo, mas acreditando que pode controlar não só a realidade, mas também a percepção dos outros.

O problema é que uma coisa ficou bem comprovada ao longo dos anos: obviamente, a racionalidade e os intelectuais não conseguem prever e gerenciar todos os problemas da política. Mas talvez eles consigam criar muitos deles. É que, sempre que criamos uma solução ou uma ferramenta de trabalho, simultaneamente, inventamos a possibilidade de ela ser usada para fins negativos. Ou, no mínimo, de ser corrompida e mal-entendida. A racionalidade resolve problemas criando outros, que também serão corrigidos e assim por diante.

Ainda assim, por conta da crença solucionista (que é uma irmã da crença na meritocracia), fomos nos agregando em sistemas de escala cada vez larga e mais complexos. Das vilas para os Estados Nação e, agora, para os mega territórios digitais, como o Facebook, por exemplo. "Vamos crescer e aí daremos um jeito". Então, fomos obrigados a fabricar mais e mais esquemas técnicos e burocráticos, nos distanciando e alienando do gerenciamento diário da vida. O que acaba levando à necessidade de criar ainda mais processos técnicos.

Achamos absolutamente trivial que alguém tenha que lidar com milhares de outras que lhe são abstratas e desconhecidas. Não as ouvimos, não vemos suas reações emocionais, não podemos debater suas opiniões diretamente. Isso é o nosso “normal”. Mas, pensando direito, isso é extremamente estranho.

E arriscado, tanto que precisamos delegar o gerenciamento do outro para instituições (que também não entendemos), leis e, agora, até aplicativos. Portanto, quem nos governa não são só os políticos: são as mecânicas, os bugs e o caos que é subproduto da racionalidade. Afinal, do contrato do aluguel até a eleição presidencial, ainda acreditamos naqueles dois vieses fundamentais: não podemos confiar uns nos outros, apenas em esquemas intelectuais e na minha suposta capacidade usá-los para narrar o passado e alterar o futuro.

Pânico discursivo #

Quando se desenvolve uma argumentação como essa, logo surge a pergunta: então você está propondo um obscurantismo anti-intelectual? É claro que não. Uma sociedade altamente regida pela abstração é o que temos agora — não há como retroceder ou revolucionar esse processo. Mas apenas questioná-lo já causa um pânico de perder a falsa sensação de controle que os esquemas intelectuais parecem nos trazer.

Na verdade, estou apenas chamando atenção para o quão assustados e deludidos parecemos estar uns em relação aos outros. Na tentativa de nos defender de bandidos, criamos a polícia, que pode se transformar num outro tipo de criminalidade. Na esperança de evitar o caos organizacional, delegamos poder e dinheiro ao Estado, que também é tomado pelo crime organizado ou, simplesmente, pela ineficiência e ignorância.

Talvez eu esteja aqui apenas tentando delimitar as minhas expectativas em relação às eleições. Enquanto o discurso da paranoia e da ingenuidade solucionista imperar, será mesmo possível fazer outra coisa além de apagar incêndios criados por situações políticas?