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Sofrimentos classificatórios

Por Eduardo Fernandes.

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O cronista Otto Lara Resende, procurando o atestado de óbito d’A Crônica.

Como a indústria do entretenimento é previsível. Cedo ou tarde, usa o crime pra capturar a atenção do consumidor. Um alien desavisado no planeta imaginaria que somos uma espécie de chupacabras anfetamínicos. Precisamos matar qualquer coisa pra seguir existindo, cozinhando moquecas, levando as crianças na escola, etc.

Dessa vez, a vítima foi A Crônica. Ouvi dizer que o assassino foi o escritor Julian Fuks. Quer dizer, pelo menos, ele identificou o corpo. O tal gênero literário estaria definhando em público, como um rock star fora do controle.

Mas, assim que Fuks divulgou o crime, várias pessoas escritoras se apressaram a desmenti-lo. Como diria o (comprovadamente defunto) Nelson Rodrigues, A Crônica é um cadáver salubérrimo. Mas o FBI ainda trabalha no caso.

E por que estou falando sobre esse assunto mórbido? Porque queria chamar atenção pra um fenômeno mais sutil, o do Sofrimento Classificatório. Ele surge quando definimos algo de forma restrita. Depois, choramos no canto.

E, claro, Fuks gives a fuck. Ele lamenta o falecimento da Falecida:

“Devota da lentidão, apreciadora da indolência e da preguiça, a crônica já não resiste à velocidade, aos imperativos da produtividade, seja no trabalho, na diversão ou no vício. A crônica não sabe existir neste mundo alucinado que já não alucina. Sinto, sinto muito anunciar algo assim sobre um ente tão querido, mas é isso, a crônica está quase morta, contam-se os seus dias.”

Ou seja: A Crônica é uma coisa lenta. Definição chapiscada e rebocada. Portanto, A Crônica é aquilo que alguns cronistas específicos escreveram no passado. Coisa histórica. Mais selada que Tutancâmon no sarcófago. E passe-me o rivotril.

Não seria mais fácil ampliar um pouco o conceito de crônica? Fazer um puxadinho em outros ritmos, ler autores que enfrentam questões contemporâneas? Isso daria uma sobrevida (e até flexibilidade) pro gênero, supostamente em risco.

Aposto que Fuks sabe disso. Porém, temos o hábito de sofrer pelas nossas definições. Mais fácil matar A Crônica do que as definições. E isso não serve só pra intelectuais. Quem nunca esteve nessa posição, pelo menos umas duas mil vezes ao dia?

Programadores, por exemplo, têm uma relação especial com o Sofrimento Classificatório. Porque as máquinas tendem a ser rígidas. Se algo não se encaixa numa definição, surge um erro, nem sempre identificável. Reação simples, até um tanto infantil: “não quero!”

Nós, sapiens demens, é que precisamos navegar por emoções aflitivas até encontrar o tal erro classificatório. E, assim, derrubar ou corrigir regras restritivas. Nós é que temos medo de perder a vida quando abandonamos uma identidade.

Em geral, computadores reagem de três maneiras: evasiva (não fornecem pistas da falha), alarmista (“erro crítico no site”) ou, simplesmente, radical (param de funcionar). Mas não me lembro de reconhecer nostalgia em mensagens de erro: “você trocou a versão do PHP. O PHP 5, devoto da lentidão, não resiste à velocidade da nossa época”.

Interessante.

Enfim, minha projeção aqui é a de que Fuks sofreu de outra coisa: da necessidade de criar um assunto pro próximo texto. Esse sofrimento vem da mídia industrial, da periodicidade, da necessidade moquéquica de ter “consistência”. Buscando referências em alguns cronistas (reconhecidos) do passado, bateu-lhe o Sofrimento Classificatório. Faz parte. Texto publicado.

Engraçado que, por conta da minha ignorância, ao longo da vida, eu enxergava A Crônica em autores que não eram classificados como cronistas. Gente como Wilhelm Reich, Raymond Aron, Hakim Bey, Alexis de Tocqueville, o jovem Marx, Susan Sontag, Walter Benjamin, André Breton, George Bernard Shaw, Oswald de Andrade, sei lá. Buscava o sabor da conversa humana até no meio de teorias.

Era um amálgama de estilos, de experiências pessoais diluídas no discurso. Direita, esquerda, doidos, conservadores, cancelados e consagrados, eu consumia textos com uma ignorância suprema. Uma coisa meio Billy Pilgrim, de gente perdida no espaço-tempo. Gente pós-moderna, alguém diria, com certa razão.

Isso deve ter me atrapalhado muito. A ponto de eu nem mesmo saber reconhecer se A Crônica morreu ou não, e continuar escrevendo, do jeito que dá. Provavelmente, nunca vou ganhar prêmios por isso. Mas, ok. Pelo menos escapei de um Sofrimento Classificatório. Um a menos.