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Tente consertar tudo, pense que tudo está quebrado

Tente consertar tudo, pense que tudo está quebrado

Por Eduardo Fernandes.

Outro dia, tentei assistir à série Pretend It's a City, que Martin Scorsese fez com Fran Lebowitz sobre — claro — Nova Iorque. Até onde conheço, a carreira da comediante é centrada nisso mesmo: reclamar sobre os desafios de viver naquela cidade.

Não é que o trabalho seja ruim. Mas aguentei apenas um episódio, até me cansar do estilo blast beat, 400 palavras por segundo, de Lebowitz. Num certo momento, eu só conseguia reparar na energia incessante que fluía dela. As palavras começaram meio que a se dissipar. Tipo aquela professora do Charlie Brown: "quó quó quó, quó quó quó".

Uma ex-namorada me dizia que eu sou uma espécie de Obelix do LSD (ou seja, não preciso usar a substância, devo ter caído num tonel dela quando criança). Talvez, isso explique minha experiência psicodélica sóbria com a série. Mas, enfim.

O que eu queria saber mesmo é quando (e como) começou esse apreço cultural pela verborragia resmungona. Voltaire, talvez? Certamente, Seinfeld é um momento importante na popularização do estilo. De qualquer forma, a prática é particularmente associada ao stand-up comedy.

Ainda assim, é engraçado que, hoje, muitos desses comediantes (majoritariamente) norte-americanos se tornaram, de alguma forma, gurus da diversidade mental. Quer dizer, pelo menos são pessoas que debatem abertamente sobre o que é conviver com desafios obsessivo-compulsivos, depressão, etc.

Marc Maron, por exemplo, virou o gente-fina de Hollywood. Parece que os artistas querem muito participar de seu podcast, WTF, não só por motivos comerciais. Já Duncan Trussell foi mais para o lado espiritual / químico, atraindo mentes mais especulativas e buscas pessoais mais arriscadas.

Gradualmente, esses comediantes migraram das reclamações super cotidianas para enfrentar questões existenciais. Ou até mesmo para a exploração da conexão mais profunda entre humanos, via bate-papo longo e sem rumo. É meio que uma antítese dos talk-shows. Comédia? Terapia? Quem se importa?

Ainda assim, aparentemente, os reclamões são mais populares. E não estou criticando. Isso tem sua importância, em especial quando vem de observadores astutos.

O que questiono é outra coisa: a super valorização do fluxo contínuo de irritação. Essa prática pode ser um tanto conservadora e escapista, na medida em que transforma certas dores em puro entretenimento.

Alguns tipos de terapia propõem que a pessoa encare sua dor. Experimentando diretamente suas emoções, conectando-se com elas sem medo (o que não significa sair por aí jogando sua miséria nos outros), aprendendo a observar seu corpo / mente, isso pode ter um efeito mais liberador do que apenas rir de tudo.

Mas não passamos as últimas décadas aprendendo que não se levar à sério é cool?

Imagino que certa postura de frivolidade cultural, de tudo é motivo de piada, é, também, uma consequência do treinamento cultural capitalista: “tudo está errado, vamos encontrar mais um defeito, EU, indivíduo empreendedor, preciso consertar isso (com a ajuda do mercado). Se não consigo, transformo em entretenimento”.

Em outras palavras, insatisfação vende produtos. Insatisfação vende ideias. Insatisfação é a base existencial do Capitalismo. "Humano é um insatisfeito por natureza. Isso é da espécie! DNA stuff, maaan." Será?

O treinamento cultural diário e contínuo para a desconfiança, para a ansiedade e um certo estilo de “senso crítico” é algo muito arraigado na sociedade moderna.

Tanto que aposto que, no fundo da sua mente, algum sinal de alerta está piscando: “espere aí? Então tudo está certo? Deixemos tudo como está?” Ou, em vez de Fran Lebowitz, devo virar o Michael Douglas, de Um Dia de Fúria?

Contemple os anticorpos ideológicos do Modernismo. Questionar o questionamento compulsivo é se tornar automaticamente conservador ou psicopata. Mas será que essas são as únicas alternativas?


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