Skip to main content
eduf.me

Uma crise de comunicação

Por Eduardo Fernandes.

Siga a newsletter Texto Sobre Tela e receba textos como esse em sua caixa postal.

Imagem: Midjourney.

No domingo, contei que, depois de passar invicto por 27 anos de Internet, caí num golpe. Era um anúncio do Instagram, que me pegou num momento de escrolamento acéfalo.

A boa novidade é que consegui recuperar o dinheiro. A ruim é que continuei matutando sobre o assunto.

É que esse estilo de fraude de Instagram revela um ponto de fragilidade bastante interessante na cultura contemporânea.

A lógica é a seguinte: ao longo do século 20, fomos nos acostumamos a saber cada vez menos sobre as coisas – e ideias – que usamos no cotidiano.

Todos os processos de produção e de consumo ficaram tão complexos, que só uma quantidade massiva, exponencial e crescente de ignorância e descaso pode nos manter funcionais.

Por outro lado, a informação virou indústria do entretenimento. Assim, gostamos de pensar que conhecemos profundamente alguns assuntos. Pelo menos, o suficiente para ter opiniões e nos separar em grupos identitários.

É assim que surgem as subculturas e as estéticas. Os “nerds” em certos games, em raw denim japonês (um tipo de jeans), em literatura, em relógios digitais vintage, etc., etc. No fundo, é um especialismo teatral, meio fraudulento. E existe um pacto de tolerância da ignorância mútua.

Por exemplo, até os maiores nerds de raw denin, não conhecem todos os detalhes sazonais implicados na produção, armazenamento e distribuição do seu tecido favorito. Uma simples variação de safra de algodão é o suficiente para mudar muitas informações encontradas no YouTube. Mas fingimos que não sabemos disso. É tudo diversão, não levamos as coisas tão a sério.

Todos deixamos por aí um rastro de desinformação basal. Porém, também emitimos sinais ornamentais de confiança.

São sinais que se parecem com boa informação e com profissionalismo. Geralmente, eles são medidos por características que aprendemos via marketing, design e comunicação de massas. Assim, são sinais relativamente fáceis de simular. E, portanto, de fraudar.

Naturalmente, nesse teatro cotidiano, ainda existe um ponto de quebra da quarta parede. Um anúncio do Instagram tem que ter um visual compatível com os padrões de design considerados como “profissionais”. Os descontos têm que ser atrativos, mas não a ponto de gerar desconfiança.

O grande problema é que o mercado de tecnologia e a sociedade de consumo vêm nos convencendo progressivamente a alargar o espaço de crença. É como se tudo parecesse milagroso, super conveniente e intuitivo. O ilusionismo é o normal.

Então, nosso sexto sentido de desconfiança, de macaco velhismo, vai perdendo potência e acuracidade. Afinal, não nos importamos com externalidades. Tudo é tão conveniente e mágico. Tudo é bom demais para ser verdade. E, no entanto, é verdade! Quer dizer, pelo menos para uma parcela da população.

É difícil produzir confiança numa sociedade como a nossa. Aprendemos a normalizar um certo nível de golpismo onipresente, de ambientes manipuladores, de comida venenosa, de ignorância dos processos cotidianos, etc.

Portanto, não se trata apenas de uma crise moral. É, fundamentalmente, uma crise de comunicação. Um discurso fraudulento cotidiano, produzindo suas consequências naturais.

Parece que, quando resolvemos praticar monoteísmo com o deus da conveniência, perdemos toda a festa pagã dos outros seres espalhados pelo universo.