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Alguém aí tem saudades da Cultura de Massas?

Por Eduardo Fernandes.

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A trilha sonora de hoje é o disco The Unidentifiable, do Matthew Ship Trio.

Transcrição do episódio #

Alô, eu sou Eduardo Fernandes e você está ouvindo o MonoEstéreo.

E hoje, segunda-feira, é dia de Improviso, aquele episódio no qual eu comento algum assunto que eu acho importante na semana. Novos episódios do seriado Falso Profundo agora vão ser publicados nas sextas-feiras.


A trilha sonora de hoje é o disco The Unidentifiable, do Matthew Ship Trio.

Matthew Ship é um pianista e compositor radicado em Nova York e já tem pelo menos uns 50 discos no catálogo. The Unidentifiable é do final de 2020.


Nessa semana, o podcast Resumido, trouxe uma discussão que me deixou intrigado. Lá, o apresentador, Bruno Natal, comentava que, depois da invasão cognitiva feita pelas redes sociais, aparentemente, perdemos a noção de uma "realidade compartilhada".

Se eu entendi direito o que o Bruno quis dizer, estamos cada vez mais circulando em nossas próprias bolhas de informação, cada um interpretando o mundo do seu jeito, recebendo as informações das suas próprias fontes, o que leva a situações como essas que estão acontecendo nos Estados Unidos: popularização de grupos de extrema direita, violência etc.

Não teríamos mais "fontes compartilhadas de verdade", fontes confiáveis, que ajudariam a interpretar as informações que chegam até nós. E esse é um papel que caberia aos jornalistas: filtrar o barulho, contextualizar as informações, ajudar a criar interpretações menos emocionais.

Ouvindo essas coisas, meu desconfiômetro começou a reclamar. Eu sentia um tom de nostalgia da Cultura de Massas, da ideia de broadcast, de transmissão de informações. Alguém confiável deveria gerenciar e domar a comunicação. E, assim, nos ajudaria a pensar.

Enfim… A gente já vem tentando essas coisas desde sempre: na estrutura familiar, na religião, no Estado, nas ciências, no jornalismo, nos influencers… É um movimento político e social que está sempre em tensão: a gente quer liberdade, mas quer também segurança e estabilidade.

Esse é um assunto que permeia toda a Ciência Política, desde os seus primórdios na sociedade ocidental, com o Platão. Ele imaginava a possibilidade de um governante filósofo, bem preparado, que desse conta das complexidades de gerenciar e distribuir a verdade.

Mais tarde, ficou claro que esse governante poderia se tornar ditatorial. Então, seria necessário criar toda uma rede de poderes que controlariam uns aos outros: o judiciário, o executivo e o legislativo. Depois, a desconfiança que a classe burguesa desenvolveu contra os governos ajudou a criar o jornalismo.

Os jornalistas, é claro, acreditam que têm os métodos adequados pra filtrar e contextualizar a verdade. Mas a história provou que esse também não é o caso: os jornalistas também seguem interesses e são obrigados a seguir estruturas e lógicas capitalistas.

Nesse momento, a imprensa alternativa ganhou popularidade: alguém teria que controlar a imprensa mainstream, de massas.

Mais tarde, surge a internet, com o discurso de que deveríamos deixar as próprias pessoas falarem entre si e descobrir suas próprias verdades. O que teria levado às tais bolhas de informação.

Dá pra perceber que esse é um movimento do estilo cabo-de-guerra? De um lado, queremos mais diversidade, de outro, queremos uma fonte segura de verdade.

Eu não acho que essa tensão vai se resolver.

Imagino que, ao longo das décadas, vamos continuar oscilando entre momentos históricos mais centralizadores (como já acontece na China, com um Estado de vigilância, que promete segurança) e momentos mais fragmentados (nos quais fica mais evidente a disputa pelo que é a verdade e o que se deve fazer com ela).

Esse é o próprio bug da linguagem. Como, nós, humanos, somos dependente dela, temos que lidar, constantemente com seus limites e subprodutos. É como comer. Cedo ou tarde, você vai ter que cagar. Ou como a gravidade neste planeta: certas coisas vão ser pesadas. Ou seja: faz parte.

Ainda assim, acho que existe um fator essencial pra ter uma experiência de cabo-de-guerra menos insana. E isso se chama "educação". Como assim? Aprender a identificar como nós nos comunicamos e o que está em jogo na comunicação. E não ficar preso apenas no nível dos assuntos que são comunicados.

Vou tentar explicar.

Por exemplo: um integrante do QAnon e um do partido comunista, aparentemente, vivem em duas bolhas cognitivas completamente diferentes. Mas esse é só o nível do assunto. Imagine que eles estejam se comunicando via Twitter. Esse seria o nível da estrutura.

Na verdade, ainda que estejam em bolhas diferentes, os dois grupos podem se comunicar de uma maneira muito parecida, já que o Twitter incentiva uma comunicação instantânea, emocional, fragmentada e reativa. Muito diferente do estilo de comunicação que seria possível via livros, que seria mais imersiva, sem o imediatismo e as reações emocionais da social media.

Se você olha pras estruturas de comunicação, percebe que temos, sim, uma realidade compartilhada: a realidade da criação contínua de lucro pras empresas de tecnologia. A realidade de gerar constante bate-boca e conflito, pra que essas chamadas plataformas de mídia, essas redes sociais, gerem tráfego e sirvam anúncios. Mas também gerem vício e dependência social, além de coletar nossos meta-dados. Com isso, essas empresas têm mais poder político pra negociar seus próprios interesses econômicos, financiar campanhas políticas e fazer lobbies pra passar leis que lhes favoreçam.

Então, o que eu chamo aqui de educação? A capacidade de entender como funcionam as mídias e tecnologias que influenciam nossa comunicação e, consequentemente, a política.

É como minimamente saber fazer sua própria comida, trocar um pneu, circular pela cidade. Não é nenhum mistério. É uma questão de responsabilidade. Precisamos (minimamente) entender que questões estão em jogo por trás daquilo que fazemos, por trás daquilo que consome nosso tempo.

Por exemplo, se alguém chega na rua e lhe oferece R$ 10 mil de graça, o que você vai fazer? Vai ficar desconfiado. Espera aí, quais são as motivações dessa pessoa? De onde veio esse dinheiro? Se eu aceitar esse dinheiro, a que tipo de situação posso acabar me conectando? A mesma coisa acontece aqui: quando alguém lhe oferece um serviço de e-mail gratuito, uma suposta "plataforma" pra se comunicar, o que essa empresa quer em troca?

É por isso que eu ando recomendando tanto o livro "Por Que Amamos Cachorros, Comemos Porcos e Vestimos Vacas" da psicóloga Melanie Joy. O livro não traz nenhum argumento novo pra maioria dos vegetarianos ou veganos. Nem é super bem escrito. Mas ele faz uma coisa muito mais importante: analisa (com muita simplicidade) quais são os mecanismos que nos levam à ignorância e aos hábitos.

Como é que aceitamos que quase 400 animais sejam cruelmente mortos por segundo nos EUA pra virar comida, enquanto gastamos fortunas com nossos animais de estimação? O que nos leva a amar uns e a ignorar os outros?

Os argumentos de Melanie Joy servem não só pra indústria da carne, mas também pra comunicação, porque também nos acostumamos a ignorar certas estruturas, lógicas e incentivos das empresas de tecnologia. E achamos que isso é assim mesmo. Não há outro jeito.

E, então, a proposta aqui é reverter o processo: educar as pessoas sobre a mídia que elas consomem, sobre as consequências sociais e ambientais da comunicação em 2021. E, em especial, matar o deslumbre com a internet: essa exploração do desejo de ser ouvido, de ter uma audiência, de ser compreendido, de ser amado e reconhecido.

De novo: eu não vou ficar esperando por uma nova verdade compartilhada. Nem especular quem é que vai assumir o papel de gerenciador dessa verdade.

Antes, prefiro ir aprendendo, continuamente, os mecanismos que me levam a ser fanático, a acreditar em notícias falsas etc.

É claro: isso está longe de ser uma solução completa. Vamos nos enganar muito nesse processo de educação. Mas há uma esperança de, aos poucos, pelo menos, refinar nossa percepção, ganhar alguma experiência que vá dificultar a manipulação e a ignorância.


Esse foi o Improviso dessa semana.

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Então é isso. Até quarta-feira na minha newsletter. E na sexta, com episódio novo de Falso Profundo. Obrigado por ouvir.

PS #

Um pequeno exemplo da nossa atual "realidade compartilhada". Pelo menos pela classe-média.