Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes.

Imagem estilizada de Eduardo Fernandes, autor do site.

Os Sonhadores Parte 2

Porque, em geral, só se faz sequências pra filmes ruins? Esse seria meu plano pra uma continuação do filme Os Sonhadores, clássico de Bernardo Bertolucci. (A partir daqui, estou assumindo que você viu o filme e sabe como ele termina.) Estamos em 2018. Mattew mora em Nova Iorque. Ele recebe um e-mail de uma mulher chamada Anna Karina. Ela diz ser francesa e filha de Isabelle. Isabelle está num estágio avançado de câncer. Anna quer que a mãe encontre Mattew antes de morrer. Depois de alguma hesitação, ele embarca pra Paris. É recebido por Anna, que se oferece pra hospedá-lo na casa da família, herdada dos avós. Ele prefere se hospedar num hotel. A partir de então, acompanhamos a jornada de Mattew tentando evitar encontrar com Isabelle. Ele percorre Paris com Anna, conversando e visitando os lugares que frequentou com Theo e Isabelle. Mas Mattew e Anna nunca falam sobre os gêmeos. Os diálogos ou são small talk ou tratam de cinema. Os dois personagens estão se conhecendo. Existe uma curiosidade estranha entre eles. Anna percebe que Mattew está abalado…

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Monocultura intelectual

Li, no Manual do Usuário, uma coisa que me deixou intrigado. O editor, Rodrigo Ghedin, pediu que os leitores do fórum do site sugerissem atividades livres de telas. Fiquei me perguntando se já estamos tão absolutamente dependentes de telas a ponto de precisarmos de dicas específicas do que fazer longe delas. Logo a seguir, o teórico de mídia, Douglas Rushkoff, publicou um texto praticamente sobre o mesmo assunto: nossa relação com o solo, o corpo, a comunidade e as atividades off-line. Em algum momento, ele dispara um discurso sobre ajudar o vizinho, sair pra rua, ser respeitoso, etc. Coisas que, aparentemente, ouviríamos dos nossos pais, quando crianças. Por que essas ideias soam tão estranhas, quando ditas em sites sobre tecnologia? É que, de alguma forma, estamos aplicando a lógica da monocultura, que veio do campo, às atividades intelectuais. Ou seja: é o enfraquecimento da diversidade. Menos atividades off-line, menos movimento do corpo, maior controle, menor flexibilidade e resiliência diante de imprevistos. Nos ambientes on-line, seguimos a lógica dos negócios. Sem pensar. Por exemplo, a pessoa tem medo de começar a escrever porque…

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Civilização Macunaíma

Nos filmes de ficção científica, é comum encontrar estátuas gigantescas na entrada de cidades icônicas. Elas representam os valores e o esplendor daquela civilização. Geralmente, é um deus, um guerreiro ou um líder militar. Pois, outro dia, enquanto tomava minha dose regular de notícias sobre o mercado de tecnologia, eu tentava imaginar que estátua essa civilização do Vale do Silício ergueria. Elon Musk? Não, muito controverso. Bill Gates? Não, pouco esplendoroso. Ronald Reagan, o presidente dos EUA que ajudou a desregulamentar o setor de tecnologia, nos anos 1980? Muito nichado. Milton Friedman, um dos principais ideólogos do neoliberalismo? Mais nichado ainda. Como achei nada adequado, resolvi importar um personagem brasileiro: Macunaíma. Imagine passar pela ponte Golden Gate, em San Francisco, e avistar, de longe, uma estátua do personagem de Mário de Andrade que se tornou símbolo da preguiça. Evocar Macunaíma parece estranho, já que há tanta atividade e aceleração no Vale do Silício. Mas, no fundo, todo esse trabalho, recursos naturais e dinheiro persegue um ideal essencialmente cansado. Quer dizer: a automatização última, o fim de qualquer “fricção”. Pensar cansa.

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Kama Sutra Biohacking

Outro dia, me dei ao trabalho de espiar o que aconteceu na CES 2024. É um mega evento, no qual a indústria da tecnologia lança produtos, aponta tendências e faz previsões ambiciosas. Desta vez, os destaques foram as energias renováveis e, especialmente, o chamado biohacking. Enquanto eu assistia à empolgação dos CEOs e marketeiros apresentando novos aparelhos de medição, controle e melhoria corporal, não conseguia parar de pensar no velho Kama Sutra. Não é que estava imaginando que muita gente iria se “feder” pra sustentar esse universo cheio de gadgets. Ou seja: mais plástico, mais alumínio, mais garimpeiros derrubando florestas pra achar matéria-prima pros microchips, mais consumo de energia pra manter servidores armazenando dados e estatísticas. Tem isso, claro. Mas eu estava pensando em como o Kama Sutra é um dos maiores manuais de biohacking já documentados. Muita gente acha que é só um livro de putaria. Não exatamente. Por um lado, é um guia prático pra usufruir de prazeres físicos, sem ficar escravo deles. Por outro, traz ferramentas e fórmulas pra melhorar o desempenho do corpo e da mente.

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A morte do jornalismo musical

Imagem de Tim Toomey, via Unsplash. Parece que o Pitchfork está com os dias contados. Durante os anos 2000, o site era um dos principais destinos pra pessoas interessadas nesse estranho gênero literário criado (talvez) nos anos 60, chamado crítica musical. O próprio nome era bem enganoso. Por alguns motivos: O que era a tal crítica musical, então? Essencialmente, ensaios ou crônicas comportamentais. Muitas delas baseadas no storytelling criado pelos departamentos de marketing de gravadoras. Ou nas convicções morais e ideológicas do articulista. De certa forma, era um cenário parecido com o que conhecemos hoje como influencers. Muitos autores criavam uma vibe em torno de si e conseguiam seus seguidores. Era um diletantismo empoderado, que buscava mentes ansiosas por criar uma identidade e pertencer a um grupo. Esse microcosmo estava baseado na cultura pop e em alguns tipos de literatura. Tudo traduzido por alguns conjuntos de expectativas morais e culturais vigentes na transição do século 20 pro 21. Crítica musical, stricto sensu, ainda deve existir nos meios acadêmicos. Nesse caso, demanda um conhecimento técnico sobre música. Senão a conversa descambaria pro campo comportamental. O que não…

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Presos num Silo

Cena da série Silo, da Apple TV. Nível de preguiça de hoje: ▓▓▓▓▓▓▓▓▓▓ 96%. Vamos lá. De vez em quando, sou pego pela vontade de assistir a seriados sci-fi. Desta vez, tentei Silo, da Apple TV. Resultado: gostei. Só que não. Vamos à ficha técnica: Gênero superficial: distopia. Tipo de distopia: pós-catástrofe climática. Gênero verdadeiro: história policial, estilo true crime e conspiração. Clima geral: mais pra mistério do que violência. Humor: 60% dark, 40% fofo. Nível de mindfuck: 40%. Estilo de tecnologia: retrô, industrial. Cores predominantes: marrom, bege, cinza. Trilha sonora: eficiente, mas no nível de passar despercebida. Nível de cortisol: alto, muitas cenas indutoras de ansiedade. Nível de diversidade: médio. Aparentemente, o planeta passou por uma catástrofe ecológica e o ar ficou tóxico. Os sobreviventes vivem trancados, em comunidade, num silo de concreto com 144 andares e duas enormes escadas em espiral no meio. Nos andares mais baixos, estão os trabalhadores braçais. Nos mais altos, os de escritório, com apartamentos melhores. Todas as pessoas são controladas por um rígido sistema de vigilância. E aqui é que a série fica interessante: não há uma segurança imperial, cheia de armas, com repressão…

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Empreendedorismo gonzo

Nesta semana, parte da Internet debateu se o hábito de Elon Musk de consumir drogas ilegais estaria saindo do controle. Nah, não vou gastar seu tempo com essa conversa. Mas o assunto me levou a refletir sobre outra coisa. É que, nos últimos 10 anos, a indústria da tecnologia dos EUA está cada vez mais abertamente associada ao consumo de drogas ilícitas. Não é como em outras carreiras (oops), nas quais se esconde o leite. Vício é um dos temas centrais das big e small techs: estudá-lo, produzi-lo nos consumidores e nos funcionários, meter-se com comportamentos e substâncias potencialmente viciantes. É o que se poderia chamar de Indústria Gonzo. Ou Gonzotech. Gonzo é o apelido que se deu a um estilo de jornalismo produzido pelo escritor Hunter S. Thompson. Durante muitas décadas, seus textos foram celebrados e considerados selvagens e inovadores, ligados à contracultura dos anos 60. Hoje, seus escritos são analisados de um jeito mais complexo. Mas o que isso tem a ver com as drogas do Vale do Silício? É que, se Thompson bebia na fonte do new-journalism, ele adicionava LSD, cocaína e todo tipo de…

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O pulso ainda pulsa

Por algum acaso algorítmico, me lembrei da música “Pulso”. É um clássico da banda Titãs, cuja letra é uma lista de doenças, recitadas num tom linear. Ela se reveza com a frase “o corpo ainda é pouco”. Como seria uma versão contemporânea dessa música? Há tantas possibilidades. Se o autor quisesse ficar só na área da psiquiatria, poderia compor um épico de 20 minutos. Ou, talvez, preferisse seguir uma linha menos pessimista, estilo biohacking, de podcasters de saúde, tipo Huberman Lab. E daí listar apenas suplementos: “whey, creatina, termogênicos, albumina”. Mas se quisesse fazer um disco triplo, conceitual, daqueles que se ouvia nos anos 1970, teria que listar identidades: “assexual, trans, cis, pan, inter”. E, aqui, seria melhor chamar um cantor grego. Ideologias também serviriam: “comunista, anarquista, libertário, altruísta eficaz, aceleracionista eficaz, extropianista, singularianista, cosmista”. Ou suas respectivas siglas e subgêneros, o chamado TRESCAL. As estéticas também não poderiam ser ignoradas: “hardcore, vaporwave, barbiecore, plazacore, indie sleaze, weird girl, coastal grandma”, etc. E o corpo ainda é pouco. É impressionante a quantidade de identidades que uma pessoa tem que gerenciar durante um…

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Afinal, quem pode jogar?

A menos que eu esteja alucinando, lembro-me de uma estranha moda que surgiu em 2023: a de imitar personagens não jogáveis de videogames. Ou melhor, os Non Playable Characters (NPC). Isso foi entre a moda dos NFTs e da IA, lembra? Ou será que entre AC e DC? Ou INSS e IOF? Está difícil de acompanhar tantas siglas passando pela tela. O fato é que alguns de nós, seres sencientes (SS), iam até o aplicativo chinês (TIKTOK) e pagavam centavos pra pessoas orgânicas (POs) fazerem movimentos repetitivos (MR) e dizer algumas palavras. Era quase que um estranho renascimento das artes de persistência, tipo Houdine e David Blaine. O influenciador podia ficar 5 horas contínuas filmando a si mesmo indo pra frente e pra trás, segurando uma mandioca, e repetindo a palavra “flor”. Isso gerou uma moda de comentários on-line, espantados com a precarização do trabalho no mundo. Nós já estávamos aceitando até imitar computadores pra ganhar algum dinheiro. E isso realmente funcionou pra alguns influenciadores NPC. Mas eu queria usar esse fenômeno pra pensar em outra coisa. Em como somos dependentes das repetições. Elas estão por toda…

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Previsões improváveis

Nostradamus, previsivelmente, a imagem deste post. Se eu fosse um profissional sério, começaria o ano com previsões previsíveis pra 2024. Mas como sou apenas mais um doido de internet, posso me dar ao luxo de publicar algumas hipóteses furadas. Pelo menos, não vou ter que admitir que errei, no fim do ano. E segue o baile. Depois de tantas décadas consumindo entretenimento industrial, com produção em larga escala e indução de consumo incessante, voltaremos a valorizar algumas coisas, como: Produzir com as próprias mãos, pelo prazer de fazer. Nada a ver com publicar ou buscar qualquer tipo de validação. O prazer é mecânico, sensorial, até certo ponto, individualista. A valorização da sazonalidade. Estou pensando em festivais como o indiano Kumba Mella, que acontece só quando certos planetas se alinham, de acordo com calendários específicos. As pessoas se juntariam pra celebrar eventos raros. E que exigem um período grande de preparação, física e mental. Ou seja: degustar a antecipação, em vez de buscar satisfação contínua, sem “fricções”. A volta do prazer no ascetismo e na disciplina. Conectado ao item anterior. Hoje, parece um absurdo, mas…

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