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Quando a economia da paixão dá errado

Por Eduardo Fernandes.

E não é que as confusões na Basecamp continuam? Agora, um terço dos seus funcionários pediu demissão – claro, acompanhado de vários posts de despedida no Twitter.

Caso você não tenha lido meu texto da semana passada, a bagunça se estabeleceu depois dos diretores proibirem os empregados de debater sobre política nos "espaços públicos digitais" da companhia. Mas voltei ao assunto por outro motivo.

É que o Basecamp é um exemplo clássico de projeto indie. Está completamente associado ao esforço, à paixão e aos "estilos" dos fundadores, Jason Fried e David H. Hansson. Portanto, pode ser enquadrado na chamada passion economy, uma das expressões mais amadas na área de tecnologia.

Bem diferente do caso "Tom, do MySpace", que está mais pra "traidor do movimento" ou "me compra, Big Tech!". Tom Anderson até começou na paixão, tanto que, automaticamente, era o primeiro amigo de todos os que entravam naquela velha rede social. Mas deu um vazare antes dos problemas surgirem.

O engajamento de Fried e Hasson tende a ser considerado mais nobre que a saída estratégica de Anderson. Pelo menos até que você tenha que trabalhar nessas companhias movidas pela paixão e conviver diariamente com os apaixonados donos. Nesse caso, você pode acabar tendo que aguentar Zuckerbergs, Dorseys etc. Ou tendo que enfrentar uma constante mentalidade defensiva, de "não se meta com a minha empresa de estimação".

Pequenas empresas, grandes estorvos #

Praticamente toda minha carreira aconteceu em empresas indies. Trabalhei em vários projetos criados e mantidos apaixonadamente por uma ou duas pessoas. Revistas e editoras que, aos poucos, ganharam respeitabilidade, cresceram desengonçadamente e viraram negócios, com funcionários.

Em todas – sem exceção – havia (ou há) uma relação de amor e ódio entre empregados e diretores. E não estou falando só de luta de classes. Os donos, geralmente, são líderes carismáticos (LC), cheios de opiniões e desejos. Ainda que sejam pessoalmente generosos, como chefes, tendem a ser extremamente mandões, autocentrados e idiossincráticos.

Em geral, conseguimos tolerar o LC porque nos sentimos engajados "num objetivo maior", além do dinheiro. Aquela editora lança os livros que gosto de ler, é cool, descolada e formou uma comunidade estilosa, com a qual quero ser associado. Ser funcionário ali é uma garantia de status, de pertencer a algo.

Para as pessoas de classe média (em especial entre os 20 e 30 e poucos anos), que podem mais ou menos "escolher" seu emprego, o trabalho tem tudo a ver com a criação e manutenção de uma identidade.

É isso que empresas como o Google, Twitter, Pixar, entre outras, entenderam, ao criar seus escritórios geeks. Até agora, isso mais ou menos funcionou, como uma forma de controlar os funcionários, mantendo certas contradições em segundo plano. Mas os tempos estão mudando.

Até porque, quanto mais você trabalha com um LC, mais a paixão se dissolve. Você descobre que ele também é inseguro e, basicamente, está paranoico de perder sua própria identidade, além do controle do seu projeto "pessoal". Afinal, ele sabe que, quando o projeto vira empresa, "pessoal" vira "departamento pessoal". E, então, ele pode deixar de ser líder, pra virar O Estorvo Carismático.

Já cheguei a trabalhar numa revista na qual os editores – literalmente – fugiam do LC. Fazíamos reuniões de pauta no Parque do Ibirapuera, em SP, ou até em restaurantes, de certa forma, pra evitar que o LC chegasse e definisse previamente toda a edição.

Certa vez, numa dessas reuniões, o LC apareceu. E, antes que ele entrasse na sala, o diretor de redação, rapidamente, pediu pra todos nós, cerca de 12 profissionais, mentirem pelas duas horas seguintes. Quer dizer: tínhamos nos reunido pra uma reunião de pauta, mas, assim que o LC chegou, fingimos que era uma reunião menos importante. Até que ele se entediou e foi embora.

Eu adoraria dizer que esse foi um caso isolado. Mas eu teria inúmeros outros exemplos pra dar, de empresas diferentes. E, como a situação do Basecamp indica, o fenômeno é até mesmo internacional, não é coisa de brasileiros, que vivem num país onde criar qualquer coisa demanda uma grande quantidade de paixão e esforço pessoal.

O que eu queria dizer é o seguinte: a chamada passion economy pode provocar esse efeito colateral tragicômico. Inicialmente, o bootstrapper encontra alguns boot lickers (lambedores de botas), que, depois, podem ser os primeiros a lhe dar um belo pé-na-bunda.

Raramente pensamos nessas coisas quando criamos nossos empreendimentos passionais. Estamos tão afoitos pra provar nosso ponto, damos tanto do nosso sangue, que podemos acabar virando O Estorvo Carismático.

Conforme o trabalho cresce e mais gente entra na equação, é fácil que a passion economy vire economia da autossabotagem ou até da tirania. É por isso que eu torço pra que um dia nós consigamos desenvolver uma COMpassion economy. Ou, pelo menos, uma economia baseada na empatia.


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