Por Eduardo Fernandes.
"Burn-out" é uma das expressões mais ouvidas na atualidade. Tão disseminada, que já entrou pro Reino dos Conceitos Ectoplásmicos, aquelas ideias que, quando ouvimos, sabemos do que se trata, mas é só tentar explicá-las que se tornam insubstanciais, vagas e até assustadoras.
Definindo o fantasma #
É que não há exatamente um consenso entre os pesquisadores a respeito do assunto, mas há alguns sintomas comuns. A vítima do burn-out se sente…
- Psicologicamente cansada com mais frequência do que o seu usual.
- Irritável, constantemente critica pessoas e processos.
- Desconectada da sua comunidade.
- Improdutiva, procrastinando cada vez mais.
- Ineficiente: a mesma quantidade de trabalho traz piores resultados.
- Cínica, cética e sarcástica em relação aos valores e procedimentos do seu ambiente de trabalho e/ou família.
- Dependente de quantidades cada vez maiores de "anestésicos", como drogas, social media e outras distrações.
- Presa num círculo vicioso de discursos internos: de vitimização, autopunição e autossabotagem. Ela constantemente cria narrativas reafirmando o quanto está cansada, ou como não é valorizada, ou como é inútil. Autocentramento.
- Perdendo os limites nas relações interpessoais: "dá chiliques", acusa outras pessoas de maneira agressiva, compra confrontos sem pensar nas consequências. Sente-se no direito de sair dos trilhos.
- Fisicamente descontrolada, batendo em si mesma, em coisas ou nos outros, em momentos de raiva. Não consegue dormir, desenvolve constipação ou disenteria, entre outros desconfortos.
Contextualizando #
Um artigo da New Yorker questiona se o burn-out seria um fenômeno contemporâneo ou um bug da espécie humana. O texto de Jill Lepore traça as origens do uso da expressão. Conta a história dos primeiros diagnósticos da doença, que surgiram entre os militares e depois migraram pros profissionais de saúde. Também compila os principais livros e artigos científicos sobre o assunto. Vale muito a leitura.
Contextualizando o tratamento #
Há vários contextos de “tratamento” do burn-out:
- Gerencial: ajudar comunidades e administradores a entender os sinais da doença no ambiente. Prevenir que ela vire uma epidemia.
- Político / econômico: entender quais são as forças políticas (de desigualdade e luta de classes) que ajudam a causar burn-out. Intervir pra mudá-las.
- Culturais: revelar como as ideologias por trás de sistemas como o Capitalismo se transformam em valores culturais mais sutís, como, por exemplo, o culto da produtividade a todo custo.
O quarto elemento #
Vamos nos concentrar no aspecto mais psicológico do burn-out. De modo geral, é uma doença relacionada ao orgulho. Que se manifesta nos seguintes sintomas:
- Querer produzir sempre mais, “crescer” (que também é um Conceito Ectoplásmico, embora pareça objetivo).
- Tentar manter-se compatível com certos padrões não-realistas de eficiência e excelência.
- Não saber dizer não.
- Não querer ser visto – pelos outros e por si mesmo – como decadente, ineficiente etc.
Burn-out pode ser o subproduto da síndrome do Super homem, de querer ser reconhecido (por si e pelos outros) como infalível, impávido colosso.
O velho vício da dopamina #
O artigo da New Yorker também enfrenta a relação entre o burn-out e o vício. Aparentemente, nos últimos 10 anos, nos tornamos uma sociedade com altos níveis de compulsão por substâncias (pelo menos segundo o livro The Age of Addiction).
Além das drogas, também nos viciamos em smartphones, timelines de redes sociais e entretenimento. Isso ajuda a explicar porque o burn-out parece uma co-pandemia, junto com o COVID-19: nos tornamos ainda mais "heavy-users" de tecnologias digitais, mantidas por empresas monopolistas, cujo modelo de negócios está baseado em "engajar constantemente" (ou seja, viciar) usuários.
Assim, herdamos a irritabilidade, entre outras características, geralmente associadas à dependência química tradicional.
Tá. Então mudo pro mato e jogo o celular na privada? #
Aí é que está. Por estranho que pareça, até o meu próprio estilo de vida é bem propício ao burn-out.
"Mas você não era um feliz budistinha, morando em comunidade num monastério, no meio da Serra Gaúcha? Então você pode ficar cansado… de meditar?"
Vamos com calma. Monastérios são engrenagens complexas, baseadas em horários. E, se você se esquece do motivo e do objetivo de estar ali, em vez de seguir Buda, você acaba escravo do relógio: hora de acordar, hora de meditar, hora de comer, hora de servir comida aos outros etc. Se você se atrasar ou perder um ciclo, verá facilmente as consequências, como um dominó derrubando a fila inteira.
Aqui, há uma enorme paciência com os erros uns dos outros. Ainda assim, você consegue se treinar pra enxergar a si mesmo como uma máquina, repetindo rotinas, do mantra até a escala da portaria. Aquilo que foi construído pra libertá-lo, pode amarrá-lo ainda mais.
Então, estamos juntos na busca de uma “solução” não-bucólica pro burn-out.
Não enrola e me passa logo essa solução #
É claro que eu não tenho uma fórmula infalível pra lidar com o burn-out. Apenas posso compartilhar minhas tentativas:
- Evitar se comprometer com muitas coisas.
- Estabelecer limites. Ser claro na comunicação deles.
- Toda vez que o discurso do burn-out vem à mente, não fugir dele, olhá-lo de frente, entender que aquilo é um pensamento e vai passar.
- Tratar telas como drogas (café, remédios ou mesmo drogas ilegais): desenvolver limites, ter cuidados com fornecedores e dosagens. Em especial, ficar de olho nos rituais paralelos que impulsionam o consumo (por exemplo, deixar o celular muito à mão facilita o abuso).
- Valorizar o descanso como remédio. Não só pra mim, mas pros outros. Quer dizer, quando estou muito cansado, geralmente, causo problemas também pra comunidade, tanto a curto quanto a longo prazo. Assim, descanso é preventivo. E uma responsabilidade social.
- Quando sentir-se realmente irritado, focar-se na respiração.
- Não alimentar os trolls internos: não continuar com discurso auto depreciativo, que é bem diferente da humildade e da autocrítica.
- Pedir ajuda quando necessário.
- Não se deixar definir pelo trabalho. E nem por conceitos como produtividade, respeitabilidade entre os pares e expectativas não-realistas.
- Exercício, água e alimentação livre de produtos inflamatórios.
- Lembrar-se da motivação: por que você faz aquilo? Qual é a visão de longo alcance que justifica se dar ao trabalho de manter aquele estilo de vida?
- Simplificar, re-simplificar, simplificar de novo.
- Não se apegar a estilos de vida. Reinventar-se, quando possível.
Tudo isso resolve o burn-out ou é um bando de BS de auto-ajuda?
Sinceramente? Não sei.
Porque não considero o burn-out como algo estático, hoje você tem e amanhã se curou. Observar os sintomas de burn-out pode ser um bom sistema de autorregulação. Até porque surgem novas mutações de burn-out o tempo todo.
Saúde, essa ideia insalubre #
Aliás, nossa época vem ajudando a mostrar que nunca estamos perfeitamente saudáveis, nem completamente doentes.
Tudo é um processo sistêmico: a cura gera a doença, que fomenta outra cura, que reforma a doença. Ebulição constante. Como humano, vivendo num planeta, é irrealista pensar que um dia estarei completamente saudável.
Como outras doenças, o burn-out carrega informações, aprendizados, que nos levam a constantes adaptações.
Não é que eu queira minimizar o problema. Burn-out pode se tornar perigoso. A ideia é sugerir que, até certo ponto, cada um tem seu próprio burn-out, com suas próprias “curas”.
Pelo menos pra mim, burn-out também pode ser visto como burn-in, botar fogo em coisas minhas que não prestam mais. Ou "burning down the house", mudar coisas no mundo que não fazem mais sentido.
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