Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

O filme que previu nossas vidas

Tiozinho que fica alugando os outros com suas teorias conspiratórias, em cena de Slacker. Quando falamos sobre filmes proféticos, de modo geral pensamos no gênero sci-fi. Mas quem diria que uma obra, digamos, vagabunda, como Slacker conseguisse prever muito do clima social em que vivemos hoje? Slacker é um filme de 1991, dirigido por Richard Linklater. Não têm história. O espectador apenas acompanha rápidos trechos de conversas de transeuntes, durante um só dia na (então icônica) cidade de Austin, Texas. Como lembrou o crítico Roger Ebert, Linklater usa um método narrativo surrealista consagrado por Luís Buñuel: seguir um personagem por apenas alguns minutos e, assim que ele interage com outro, migramos para este. A sensação é a de estar espiando um fluxo de interações superficialmente. Soa familiar? É mais ou menos a experiência de aplicativos como o TikTok. Ou da cultura do scroll infinito. A diferença é que, em Slacker, não é preciso dar swipe. E, pasme, todo mundo conversa nas ruas, não por meio de telas. As pessoas gostam de falar, mas parecem não se ouvir. Discursam infinitamente sobre…

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Controlando os controladores

Os Sopranos. Tudo em família. Alô, como você está? Eu vim votar em SP. E fazer uns favores para a família. Curioso: ao usar essa frase, automaticamente penso em filmes de mafiosos. Vejam o tamanho da minha formatação cultural. Acaba que minha tarefa principal é lidar com a burocracia de estar na casa dos outros. É que minha família é um tanto obsessiva. Você vai fazer um arroz e parece que vai cuidar de um reator nuclear: “não toque nisso, cuidado com aquilo, verifique aquele procedimento”. É uma tensão constante. Meu pai chegava a ser engraçado. Lembro-me de andar pela casa sentindo seu olhar. A qualquer momento viria uma correção: peguei a faca do jeito errado (o que poderia causar um acidente), esqueci de fechar uma porta (assalto), etc. Boas intenções, mas um jeito sufocante de viver. Obviamente, desenvolvi uma sensibilidade para, como se diria em programação, “If This, Then That”. Foco nos processos, em como as coisas se encadeiam para funcionar e, em especial, o desejo de evitar riscos. Tanto que, outro dia, me acusaram de “andar nas sombras”,…

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Eu me demito!

Cena da Porta dos Fundos, no seu ambiente natural, o YouTube. Dia desses, o algoritmo do YouTube me recomendou um vídeo da Porta dos Fundos. Nele, um casal critica uma filha adolescente. Ela teria optado por estudar e encontrar uma profissão “comum”, em vez de se tornar uma YouTuber ou TikToker. Interessante. Lembrei do atual debate sobre quiet quitting, que, em tese, já seria uma resposta à Hustle Culture. Vários termos estranhos que fazem parte de um mesmo fenômeno: a perda das fronteiras entre o que é trabalho e o que é… o resto da vida. A diversão virou Entretenimento. Assim, é produzida e consumida em ritmo industrial. Tornou-se um fluxo contínuo de metas a cumprir, conscientes ou inconscientes. Se pensadores do século 19 criticavam a degradação humana de ter que seguir o tempo da linha de produção, hoje acrescentamos outras: scroll infinito, swipe do TikTok, métricas de redes sociais, etc. O Entretenimento domesticou, disciplinou e controlou a diversão, transformou o prazer em trabalho. E plantou a ideia de que o trabalho tem que ser prazeroso. Então, acabamos fazendo jornadas…

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Aquele Godard que nunca viveu

Talvez você tenha ouvido que o cineasta Jean Luc Godard morreu, aos 91 anos. Talvez também saiba que algumas das suas técnicas narrativas (cortes bruscos e ensaios visuais humorísticos, por exemplo) abriram portas para muito do que se faz hoje na Internet, em especial no YouTube. Mas Godard ficou famoso mesmo por despertar um fenômeno muito mais curioso. Como explicar? Era uma vez, os anos 90 e 2000. Neles, algumas pessoas debatiam sobre quem seriam os verdadeiros e os falsos intelectuais. Não no Twitter, mas nos bares e cafés -- era preciso sair de casa e investir dinheiro nessas atividades. Curiosamente, uma das métricas para definir essa identidade era assistir e/ou saber falar sobre algum filme de Godard. Veja o gráfico abaixo. Meio estranho? Enfim. Se você assistia e gostava, supostamente era mais intelectual. Se fingia assistir e falava muito, era “wannabe”. Para alguns, falar sobre Godard era, automaticamente, ser elitista e esnobe. Para outros, não era elitista o suficiente. Ah, o ser humano, essa coisa pitoresca. O Godard lá enfrentando seus demônios na França e, do outro lado do…

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Correndo atrás de prazer

David Bowie, ch-ch-changes. Depois de dois anos de produção contínua de newsletters, podcasts e até vídeo, vou tirar um mês de férias. Se você chegou agora, confira as edições anteriores. Confesso que ando meio cansado de Internet. E isso acaba se refletindo na criação, que fica mais mal-humorada, arrastada, repetitiva e superficial. Então, está na hora de uma “pausa disruptiva”. E, ahá, chegamos ao nosso assunto principal. Nesta semana, um post de Adam Mastroianni viralizou no Hacker News. Chama-se “As Cinco Ferramentas do Design Hedônico”. O texto trata de mais um daqueles termos que psicólogos contemporâneos criam para reciclar ideias antigas. No caso, “esteira hedônica”. Ou seja: “we can’t get no satisfaction”. Por melhor que seja a situação, sempre buscamos o próximo platô de prazer. É como um ciclo: hábito, tédio, comichão de identificar defeitos, criação de novos objetivos. Mastroiani sugere cinco estratégias para suavizar esse mecanismo: Enfim, esse é um velho senso comum aplicado universalmente. De exercícios físicos até religião. O que me lembra do conceito de Zona Autônoma Temporária, do polêmico Hakim Bey. E, claro, da análise da…

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Prisioneiro dos sonhos

O assunto de hoje é uma história em quadrinhos. Nela, uma pessoa acorda assustada. Coisas estranhas começam a acontecer. Ela não sabe ao certo os limites entre sonho e vigília. De repente, surge a ameaça de um vórtice. Sandman? Não. Refiro-me a O Processo. O de Kafka? Não, o do francês Marc-Antonie Mathieu. É um dos livros que fazem parte da série “Julius Corentin Acquefacques, prisioneiro dos sonhos”, que vem sendo lançada pela destemida editora Comix Zone. Por que destemida? É que a série traz histórias que desafiam as convenções do próprio objeto livro. Tipo inserir a capa no meio da publicação, colar uma espiral entre duas páginas, extrair um quadro da folha (deixando só um buraco), etc. Traduzir e viabilizar um projeto desses num preço acessível não é para qualquer um. Apenas dois anos depois de Gaiman publicar seu Sandman, Mathieu (foto acima) já estava alargando os limites do que era possível se fazer nas HQs. O tom da sua obra é inspirado em Kafka, claro. Mas sua imaginação está mais para os experimentos brincalhões dos surrealistas ou de…

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Rousseau na Ilha de Caras

Rousseau na praia, segundo o aplicativo de inteligência artificial Midjourney. Ano de 1996. Prédio velho da PUC-SP, um convento dos anos 40 convertido em universidade de Ciências Humanas. As salas são pequenas. Os estudantes se amontoam, sentados em carteiras escolares decadentes. Faz frio. As janelas estão fechadas. No acidentado assoalho de madeira, as bitucas de cigarro se acumulam. Naquela época, era comum alunos e (especialmente) professores fumarem durante a aula. Fazia parte do show. À frente da sala, uma das mais importantes pesquisadoras do departamento de ciências políticas, falava sobre Jean-Jacques Rousseau. Não éramos mais “bichos”, não se tratava de uma aula introdutória. Estávamos agendados para debater um texto específico. No entanto, a professora gastava nosso tempo (e pulmões) falando sobre a biografia do autor. Vivesse hoje em dia, Rousseau teria sido cancelado umas mil vezes. 30 minutos. Uma hora. E nada do texto. Ao meu lado, meu amigo Mário (que merece um artigo à parte) se contorce na cadeira. Coça a cabeça. Respira fundo. Troca olhares comigo. E eu: “aí vem”. Ele é uma pessoa preta, forte, com cerca…

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Dirigindo tanques

Humvee, veículo militar norte-americano. Já contei que pretendia ser designer de carros? Ah, esses desejos de infância. Eu não percebia na época, mas minha família orbitava em torno de automóveis. Vivíamos uma vida frugal, mas trocávamos de carro anualmente. Na verdade, meu pai era meio obcecado. Era sócio de uma agência de revenda de autos. Assistíamos à Fórmula 1 na TV. Tínhamos revistas especializadas em casa, mas não muitos livros de história ou literatura. Meu pai só comprou um vídeo cassete no consórcio, depois de muita insistência dos filhos. Porém, às vezes, surgia com um carro zero. E fazia questão de chamar a família para ver. Até Dodge Charger 1970 ele teve. Era seu jeito de comunicar “sucesso”. Cybertruck, da Tesla, que parece ter saído de um videogame antigo. Corta para 2022. Nunca tirei carteira de motorista. Nunca possuí um automóvel. Sou do tipo que leu Apocalipse Motorizado nos anos 2000 e acabei de ouvir uma entrevista de Paris Marx sobre seu novo livro, Road To Nowhere, What Silicon Valley Gets Wrong About the Future of Transportation. Desconfio de carros…

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