Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Coisas que eu gostaria de ter aprendido antes

Uma reflexão entre uma comida murcha de aeroporto e outra. Quem é que não gosta de textos do estilo “coisas que eu gostaria de ter aprendido antes”? É um gênero literário único. Vive numa espécie de limbo entre a arrogância, a humildade, a ingenuidade e a afetação. Não há como escrevê-los sem soar canastrão. Ainda assim, é um exercício interessante. Do ponto de vista do escritor, ajudam a transmutar arrependimentos e ressentimentos. Na melhor das hipóteses, em algo pragmático, como diretrizes, listas de afazeres. Na pior, levam à ingênua crença de que o autor superou algo, que passou de fase. Qualquer pessoa que tenha experiência em tentar mudar hábitos, sabe que essa é uma tarefa longa. E enganosa. É que hábitos têm diversas camadas. Têm conexões e gatilhos não-intuitivos, não-lineares, espalhados por muitos aspectos da vida da pessoa. São interconectados em redes, influenciando e sendo influenciados por vários sistemas e percepções. Assim, os textos de autoavaliação pública podem tanto virar um retrofit de si, quanto self-washing (mudança mentirosa, só na embalagem). Mas, do ponto de vista do leitor, quase sempre…

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Sinead O’Connor: o que a morte não leva

Talvez você já saiba que Sinead O’Connor morreu. A notícia me fez pensar sobre como as relações parassociais mudaram nas últimas décadas. Durante o auge da fama da cantora, eu era adolescente. Manjava pouco de inglês. Não usava internet. Então, surgia aquele rosto na TV, com olhos enormes, lábios pequenos. Uma voz frágil, mas cheia de raiva. O cabelo raspado. Dançando com movimentos duros. Nos anos 80 e 90 sabíamos menos da vida dos artistas. Você teria que realmente pesquisar, investir tempo pra descobrir detalhes. Relações parassociais baseadas em informação custavam caro. Mas você sempre poderia imaginar, criar sua própria Sinead O’Connor. Estranhamente, era algo mais democrático: fãs não se viam tão ameaçados pela personalidade dos artistas. Poderiam projetá-las. Não precisavam “checar os antecedentes criminais” da pessoa constantemente. Assim, mesmo sem entender direito os contextos das letras da cantora, mesmo sem conhecer sua história marcada pelo abuso, era muito fácil se conectar com a dor de Sinead O’Connor. Era só olhar pros seus olhos: você sabia que algo ali não ia bem. Entendia que ela era um caso de alguém…

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A bomba de Christopher Nolan

Ah, a expectativa, essa destruidora de experiências humanas. Onde quer que ela aparece, causa decepção. É automático. E mesmo que você saiba disso, que pense no assunto sistematicamente, ainda assim, cai na armadilha. Do que estou falando? Ora, do filme Oppenheimer, claro. De que mais seria? Amor? Trabalho? É claro que expectativas não influenciam essas coisas, não é? Quem afirmaria tal absurdo? É só sobre cinema mesmo, garanto. Enfim, assisti ao filme de Christopher Nolan numa sala de cinema em Sebastopol, Califórnia. Portanto, sem legendas. Lá pelas tantas, achei que estava perdido na tradução. Não conseguia entender boa parte do que era dito. Envergonhado, chequei com meus amigos nativos. Situação parecida. O volume da trilha sonora e do sound design era tão alto, que tornava o uso de legendas necessário. Aliás, a música é onipresente, criando um clima de tensão constante. Praticamente, não há dinâmica. Não há pausas pra respirar e se conectar emocionalmente com a história. Talvez o assunto do filme seja tão forte que liberou Nolan pra contar a história como um trem descarrilhado. Uma bomba no ritmo…

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Está cansado? Que tipo de cansado?

Quem é que não está mentalmente cansado hoje em dia? Cientistas franceses acharam o motivo. É um neurotransmissor chamado glutamato. Deu na The Economist. Ele se acumula no cérebro, causando a sensação de fadiga. Solução? Ora, dormir. Por enquanto, é isso mesmo. Daqui a pouco, alguém inventará outro bloqueador de fadiga mental. E ficaremos mais ou menos dependentes, como de tantos outros remédios e substâncias. Mas por que toquei nesse assunto, que conheço tão pouco? Quer dizer, neurociência, não cansaço mental. Nesse, sou PhD. Ao longo da minha vida, meus estilos de vida paralelos (escritor e meditador) me colocaram numa posição privilegiada pra enfrentar períodos de fadigas mentais. Uso o plural porque nem todas são iguais. Vamos dividir a fadiga em duas categorias: A mais fácil de perceber é a fadiga decorrente da ausência de foco. Surge do multitasking, da procrastinação, do scroll infinito, de pular de uma “diversão” pra outra. Após horas de indulgência nesse estilo de vida, a pessoa se sente completamente exausta. E, ainda assim, pode repetir comportamentos compulsivos por horas. Até apagar num sofá. Outra fadiga mental conhecida…

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Transportando desejos no avião

“Pode trazer uma coisinha pra mim dos EUA?” Minha tour de 2023 pela Califórnia está chegando ao fim. Em 15 dias, volto pra São Paulo, por alguns dias. Foram 6 meses. Passou rápido demais. Fazendo as malas, me deparo com uma situação bem brasileira: conhecidos me pedindo pra levar coisas pro Brasil. Cheguei com uma mala de mão. Volto praticamente com um contêiner. Meus colegas de PPI brincam que é só aparecer um brasileiro que os pacotes se multiplicam na caixa postal. A fúria consumista brasileira é implacável. É um King Kong esbravejando no alto do edifício. Um demônio da Tasmânia. Um tornado destelhando os galpões da Amazon. Os funcionários do Bezos estão sofrendo ataques cardíacos em massa. Da minha parte, me viciei um pouco na prática do thrifting, a de descobrir pérolas em brechós. Aliás, as vendas de garagem se proliferam pelas esquinas. Cheguei até a fazer vídeo sobre isso, há algum tempo. É impressionante o papel que os EUA (e a China) cumprem: ser as lojas de bugigangas do planeta. Passei só uns 20 dias na China e não…

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Coletividade em ação

Mais um projeto rápido para a B9 / Braincast: uma série de 4 episódios sobre cooperativismo. A missão foi solicitada pela Organização das Cooperativas do Brasil (OCB). Foram cerca de 10 entrevistas, além das pesquisas e escrita do roteiro. Tudo realizado em 1 mês, publicando semanalmente. Aqui está o resultado. Episódio 1 Episódio 2 Episódio 3 Episódio 4

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Design é política

Mark Zuckerberg, dono do Instagram e, agora, do Threads. A Meta acabou de lançar o Threads, um aplicativo pra competir com o Twitter. Em apenas 4 horas, arrebanhou 5 milhões de usuários. No total, o Twitter tem 354 e o Mastodon, 10. Acho que podemos chamar isso de fenômeno de massas, não é? Talvez só menor do que o advento do ChatGPT. Essa é a cara da cultura de massas nos anos 2023. Diversificamos o consumo de informação, mas ainda usamos os produtos de pouquíssimas corporações. A ideia de vincular o novo programa ao Instagram facilitou o cadastro, levando à adoção por impulso. Outra evidência de que o comportamento de manada, essa coisa tão século 20, continua atualíssimo. Mais saudável que o GigaChad. Os profissionais de UI (User Interface) e UX (User Experience) são alguns dos maiores instrumentos de política da atualidade. Seu trabalho é crucial pra movimentar o tempo, dinheiro e a saúde mental de bilhões de pessoas. Mas é claro que muitos sequer pensam nisso. Por que gastar tempo com formação política? Já estão felizes quando o cliente aprova um…

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Bate que eu gosto, Elon

O antropólogo David Graeber. Elon Musk acabou de limitar o número de posts no Twitter pra usuários não-pagantes. Muita gente está querendo que o homem tenha uma overdose de Ketamina. Mas, eu, se usasse o aplicativo, estaria feliz. Sei lá. Limites estimulam a criatividade. Não era essa a ideia inicial do Twitter? Restringir os textos a apenas 140 resmungos? A revolta dos usuários é compreensível. Ninguém gosta quando os limites são impostos. Nem todo mundo recebe uma notícia dessas com o humor de um Georges Perec, por exemplo, que resolveu escrever um livro inteiro sem usar a letra E. Ou como os escritores beats e os cineastas do Dogma 95, que inventavam suas regras pra poder atiçar a criatividade. A diferença aqui é a sensação de autonomia. Se escolho a regra, é diversão. Se é imposta, me revolto. Curiosamente, poucos se sentem limitados ao entrar no Twitter. Parece um bom negócio, inicialmente: trocar distribuição por autonomia. Mas, uma vez assinado o pacto com o diabo, aumenta a sensibilidade com as regras da encruzilhada. Um dos grandes “inovadores” em detectar e expor essa ambiguidade foi o escritor…

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Como ser um fenômeno de mídia

Há quem diga que a Inteligência Artificial generativa já está roubando meu emprego de escritor. Não sei. Ando mais interessado em outro “concorrente”: os vídeos pós-narrativos. Pós-narrativos? Sim, porque eles possuem uma história. Têm cenário, contexto, ponto de partida e conclusão. Até mesmo a presença de um herói vencendo obstáculos. Porém, ninguém, nem mesmo a IA, escreveu os roteiros. Não deixam de ser um reality show. Mas sem personagens pré-selecionados e estimulados por produtores. São vídeos improvisados. Mas, paradoxalmente, tudo o que acontece é completamente previsível. Super cotidiano. Demasiadamente cotidiano. Narrativas sem firulas, mais minimalistas que o minimalismo. “Ah, que saco, me dá logo um exemplo”. Com prazer: Tim, The Lawnmower Man. Ou, em bom português: Timóteo da Roçadeira. Funciona assim: Tim anda pelas cidades dos Estados Unidos e encontra os quintais mais bagunçados — ou eco-brutalistas, pra usar uma expressão da moda. Toca a campainha, chama o dono da propriedade e se oferece pra dar um trato no local. Gratuitamente. A seguir, filma todo o processo de cortar a grama. Trilha sonora simples. Pouquíssima conversa. Time lapses. Algum voice over, geralmente, enfatizando…

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Amizade não é racional

“Você é meu amigo?” Li que a empresa por trás do aplicativo de relacionamentos Bumble quer lançar outro, desta vez dedicado a encontrar amigos. Parece fácil. Cria-se um bom sistema de buscas pra encontrar gente com gostos semelhantes. Depois, é só deixar a galera conversar. Talvez, disponibilizar notificações pra ajudar na manutenção da amizade. O conceito aqui é: amigo como to-do-list, gerenciamento de projeto. Funcionaria? Não sei. Talvez eu é que sou estranho. Meus amigos mais próximos, mais puro malte, mais longevos, têm praticamente zero interesses em comum comigo. Às vezes até parece que têm, mas não. Por exemplo, desde a adolescência, tenho um amigo que, sim, conheci via projetos de música. Porém, praticamente não concordo com seus gostos musicais. Nossas visões políticas são bastante diferentes. E, pra falar a verdade, às vezes, ele até me trata bem mal. Dane-se, simplesmente gostamos um do outro há 30 anos. É uma coisa meio Vegeta e Goku. Outros amigos são super alinhados culturalmente. Mas quase nunca nos falamos. Todas as vezes que isso acontece, a experiência é super boa e nos prometemos…

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