Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Oops. Você foi censurado

"Desculpe-me, Dave, você digitou as palavras-chaves erradas". Você escreve um romance. Digita mil palavras num processador de textos on-line. Então, certo dia, tenta abrir o documento para revisá-lo. De repente, “desculpe-me, Dave”. O texto foi escaneado via machine learning e censurado. Você não tem mais acesso a ele. Segundo a MIT Tech Review, foi o que aconteceu recentemente com uma novelista chinesa, que usava uma espécie de Google Docs local, o WPS. Furiosa, a autora reclamou na rede social Weibo e seu post viralizou. Oops. A denúncia ficou mais famosa do que a obra. Mais: ela despertou atenção negativa para a empresa por trás do WPS, Kingsoft, que teve que se explicar em público. Assim, também expôs os limites da Lei de Ciber-segurança chinesa. Ou seja, mesmo num país ditatorial, a censura acabou provocando mais barulho do que silêncio. E, provavelmente, o romance foi pego pela paranoia descalibrada de algoritmos que não sabem distinguir contextos e nuances. A reportagem da MIT é bem vaga (alerta de factoide). Ainda assim, serve para nos lembrar de duas palavras (grudadas): YouTube. Quantas vezes…

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A vida artística

O ceramista e músico (nas horas vagas), Nick Cave. Milagre. Neste ano, acho que assisti a só dois documentários sobre artistas: David Lynch - The Art Life e, agora, This Much I Now To Be True, sobre Nick Cave. Quer dizer, espera aí. Teve a PJ Harvey também. Enfim. Melhor nem começar a investigar, porque vou descobrir mais. De qualquer forma, o que eu queria dizer é o seguinte: Cave e Lynch são duas personalidades bastante diferentes, mas compartilham algo muito comum com praticamente todos os artistas: o amor à rotina. Se o pessoal do capital financeiro gosta de adrenalina, de dar reload em gráficos (o que não deixa de ser um consumo de narrativas), criadores precisam de alguma estrutura, de repetição, por meio da qual possam experimentar, experimentar e experimentar. Todos os dias. David Lynch se refere a isso como “a vida artística”. Não importa o que aconteça, ele acorda e vai lidar com seus pincéis. Ou ferramentas de carpintaria. Ou constrói narrativas. Não interessa, exatamente, nem o meio e nem a mensagem: a mente de Lynch precisa estar…

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Escola do pós-apocalipse

Há muita gente pensando seriamente sobre o que fazer após o fim iminente da nossa civilização. Quer dizer, não sei se “seriamente” é a palavra certa, mas, enfim, alguns bilionários já começaram a construir seus refúgios na Nova Zelândia. E há até quem ofereça aluguéis turísticos pré-apocalípticos, os AirBnBunkers. Mas e o resto de nós? Como nos preparar para sobreviver às consequências do aquecimento global? Ora, matriculando-se na Post-Apocalypse School of Teeside. É uma espécie de escola alternativa, sediada no norte da Inglaterra. Seu currículo é focado em permacultura, em preparar os alunos para plantar sua própria comida, purificar água, distinguir entre plantas venenosas e nutritivas, se virar sem eletricidade, etc. De longe, parece uma versão turbinada do escotismo. Conheci o projeto a partir de uma entrevista com a fundadora, a poetisa e ativista Lisa Lovebucket (foto abaixo). Aliás, que nome: “balde de amor”. Ao longo da conversa, eu já esperava o momento em que Lovebucket começaria a mencionar o assunto segurança. E, então, surgiriam homens brancos fascistas com roupas militares carregando metralhadoras. Mas, aparentemente, as habilidades de defesa que…

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O prazer de ser um não-praticante

Marcus Aurelius, um dos mais estóicos mais cultuados da atualidade. Já faz alguns anos que o estoicismo entrou na moda, particularmente entre os tech bros dos EUA. Surgiram canais no YouTube e TikTok exclusivamente dedicados ao assunto. Gurus do mercado financeiro, como Scott Galloway, Tim Ferris e até mesmo Nassim Nicholas Taleb se tornaram divulgadores assíduos das ideias de Zenão de Cítio, Epiteto, Sêneca e Marcus Aurelius. Algumas dessas até se tornaram slogans motivacionais usados em empresas como o Google (por exemplo, “controle os controláveis”). Parece estranho que uma ideologia focada em conceitos como austeridade, autocontrole e paciência tenha se tornado tão viral. Na prática, muitos dos mesmos tech bros neo-estoicos seguem o aceleracionismo. E cresceram admirando o individualismo dos personagens de Ayn Rand. Além de juntar a essa salada tons de sci-fi, astrologia e divulgação científica pop. Na verdade, o estoicismo é apenas mais um desses multiversos ideológicos apropriados por gurus sazonais. Quer dizer, profissionais do entretenimento intelectual que surgem, desaparecem ou se reciclam ao longo do tempo. Outras ideias já passaram por esse mesmo processo de retrofit, como…

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Saúde mental hardcore

Jello Biafra, da clássica banda punk Dead Kennedys. Mais um buraco de coelho na Internet. Chama-se Hardcore Humanism Podcast. É um programa no qual um psiquiatra (que assina apenas como Dr. Mike) entrevista músicos como Jerry Cantrell, do Alice In Chains, George Clinton, Steve Albini, Jewel e até Dee Snider, do Twisted Sister. Imagine ouvir Jello Biafra, do Dead Kennedys, se virando para falar sobre seu pai, Stanley Boucher, sem demonstrar vulnerabilidade. Pois é. Boucher era um intelectual e ativista do interior do Colorado, nos anos 60. Do tipo que assiste a documentários sobre guerra com os filhos, explicando todos os contextos políticos. Na entrevista, naturalmente, Dr. Mike insinua que Biafra herdou o engajamento do pai. E o vocalista responde algo como: “quando o Dead Kennedys começou a decolar, meu pai olhou uma notícia sobre a banda no jornal e disse que, aparentemente, eu estava mesmo realizando alguma coisa. Mas nunca tinha lido Shakespeare”. Gatilho puxado. A partir de então, Biafra não consegue mais disfarçar as evidências de uma vida inteira de tentativas de agradar ao super pai inalcançável. E…

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