Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Quando a esmola é demais

Uma das minhas ambiguidades de estimação é a crença / descrença na generosidade. Tento acreditar nela, tento praticá-la, mas a verdade é que sempre fico desconfiado. Se alguém me oferece algo, a primeira reação é a Checagem Larry David: Por um lado, estamos vivos graças a redes de generosidade incessantes. Dos nossos pais até pessoas que mal conhecemos nas ruas, sempre tem alguém ajudando de alguma forma. É difícil de perceber, mas vivemos cercados dessa generosidade biodegradável, "nunca te vi, nunca mais te verei, mas serei bacana contigo por um minuto". Há quem acredite até que, em catástrofes, nossa primeira reação é colaborar, não migrar para o estado de natureza hobbesiano. Porém, como tantas outras coisas, a generosidade tem um problema de escala: vai ficando ameaçada conforme custa mais e se prolonga ao longo do tempo. E aí surgem os custos não combinados. Como você bem sabe, há quem pratique generosidade para (consciente ou inconscientemente) escravizar os outros, mantê-los sob controle, criar um séquito de admiradores, para sentir-se superior, para calibrar a autoestima, etc. Relações baseadas em generosidade tóxica costumam…

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Quando todo mundo ficou esperto

Espere aí? Isso é uma sessão de yoga ou eu virei o Robocop? Outro dia, tive uma surpresa ao entrar no consultório da minha (até então previsível) terapeuta holística, Ganesha da Silva. EF (atônito) - Mas o que aconteceu com seu escritório? Ganesha da Silva - Resolvi inovar. Agora estou praticando smart holism. EF - Como é? Cadê a maca branca? GS - Troquei por camas de estímulo elétrico. EF - E os óleos essenciais? GS - Não preciso mais. Agora, eu coloco uns eletrodos nas suas têmporas. É bem mais eficiente do que os cheiros para estimular seu cérebro. EF - E as imagens de deidades indianas? GS - Olha, se você realmente precisa dessa coisa ultrapassada, posso te dar uns óculos de realidade virtual. Tem uns filmes de deidades altamente imersivos. EF - Imersivos? Tipo vou sentir o bafo do leão da Parvati? GS - Melhor que isso! Você deveria tentar, é tudo feito com a Unreal Engine 5. E, se você quiser, a gente faz uma live dessa sessão no Twitch. EF - Live no Twitch? GS…

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Tim Burton no Brasil

O cineasta Tim Burton voltou ao Brasil. Veio promover uma exposição sobre seu trabalho, que está na Oca, em São Paulo, até o dia 14/08. Note que eu mencionei trabalho e não filmes. É que o evento reúne seus desenhos e cenários, tudo organizado de forma imersiva. É esperado que o visitante "entre" no mundo de Burton e circule por ele. E tire fotos. E compartilhe no Instagram, claro. Burton é uma espécie de Disney, só que focado em encontrar fofura e inocência no meio da neurodiversidade, das secreções, do horror, das pessoas marginalizadas pela aparência e de comportamento estranho. Essa "leveza" no meio do terror é o que diferencia Burton de outros autores que trabalham em áreas semelhantes, como David Lynch, por exemplo. Burton celebra a esquisitice, em vez de temê-la ou compará-la com alguma "normalidade" perdida. É curioso que Burton seja relembrado agora, bem quando um dos seus maiores parceiros, Johnny Depp, também está em cartaz num reality-show-de-horror muito popular na Internet. Não sei se você ouviu falar. Depp foi essencial na construção da imagem e da voz…

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Links de 06 de maio

Assine djá! É só R$ 10 por mês. Yongey Mingyur Rinpoche está agendado para ensinar em SP, no final de junho. Enquanto isso, ele fala sobre a diferença entre awareness e mindfulness, no YouTube. Quando os primeiros memes começaram a surgir, eu achava que eram cartuns para quem não se arriscava a desenhar -- uma espécie de democratização do humor. Mas, aos poucos, eles viraram de arma cultural e política a até profissão. Hoje, está cada vez mais difícil diferenciar humor, marketing, jornalismo e manipulação. Então, faz sentido uma ferramenta que crie memes via inteligência artificial. O desejo de automatizar é o primeiro indício de esvaziamento do sentido. Precisando limpar fundos de fotos? Melhorar a resolução delas? A Meta liberou na web sua nova linguagem de Inteligência Artificial. Interessante, considerando que vazou um documento da empresa admitindo que seus analistas não sabem muito bem para onde vão tantos dados dos usuários. Uma detalhada proposta para usuários e desenvolvedores para tentar livrar a web de tanta propaganda e tecnologias intrusivas. Tenho a impressão de que muita gente que está trocando o…

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Esse trabalho vai revolucionar o mundo

Como se sabe, a vida não está fácil. Então, venho precisando me aplicar para vagas de emprego formal. Que aventura. Descobri que a maioria das empresas (na minha área, pelo menos) virou partido político ou agência de super-heróis. Aparentemente, todas estão nessa de revolucionar o mercado. Hoje em dia, é uma vergonha apenas fabricar, sei lá, cortinas: a empresa precisa dizer que está salvando o universo do problema da luz. Porteiro? Revolucionando o mercado de segurança. Despachante? Praticando smart-bureaucracy. Não sei quem escreve os anúncios de emprego publicados no LinkedIn. Deve ser a mesma agência. Nela, colocam cocaína no café. Só pode ser. Certa vez, fui incitado a dizer porque eu queria ser um "(nome da empresa) Samurai". Samurais eram assassinos. #cuidado_com_suas_metáforas. Além disso, é como se, num primeiro encontro às cegas, já tivesse que dizer que morreria e mataria pela pessoa. Espere aí, vamos tomar um vinho antes. É que o tom de marketing superlativo, popularizado por Steve Jobs nos anos 80, meio que virou a regra. E leva a umas situações constrangedoras, como listar salário como benefício. "Aqui…

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A origem de tudo

Update em 23/06/2022: A Cia das Letras anunciou que vai lançar o livro no Brasil em agosto. Não sei se alguma editora pretende lançar no Brasil The Dawn of Everything: A New History of Humanity, dos Davids Graeber (foto acima) e Wengrow. Se não, deveria. Agora. Em tese, esse é um livro feito para desmistificar obras de Ciências Sociais Pop, como as de Steven Pinker e Yuval Noah Harari. E segue o melhor espírito: "espere aí, vamos reler essas estatísticas que vocês apresentam, vamos checar essas fontes". Graeber e Wengrow compilam (num texto bastante claro e objetivo) séculos de críticas ao modo Iluminista / Liberal de pensar a realidade -- esse conjunto de vieses que, ao mesmo tempo, sustenta e destrói nossa sociedade já há alguns séculos. É um trabalho bastante audacioso. Ainda mais do que o clássico Dívida, os Primeiros 5.000 anos, de Graeber (hoje em dia, vendido por uma pequena fortuna). O gigantesco esforço intelectual aqui foi o de analisar dados de pesquisas antropológicas recentes, além de reler clássicos das Ciências Sociais acadêmicas. O arqueólogo David Wengrow. Acaba…

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Alucinando no trabalho

Antes de começar, uma promessa: este será meu último texto sobre social media e bilionários. Tudo bem que a proposta desta newsletter seja investigar tecnologia e cultura buscando autoconhecimento. Mas já me repeti demais. Não quero mais me deixar pautar por esses assuntos que, embora importantes, são muito restritivos. Vamos mudar esse sistema operacional. Ainda assim, hoje partiremos de algumas frases publicadas logo que o Twitter foi comprado por Elon Musk, nesta semana. O "Block Head", ex-CEO do Twitter, Jack Dorsey tuitou o seguinte: "O Twitter é a coisa mais próxima que temos de uma consciência global. Com 330 milhões de usuários ativos (em 2019), o Twitter seria uma espécie de consciência global. Global por amostragem. A empresa esqueceu de convocar cerca de 7 bilhões de humanos para o empreendimento. Imagine a quantidade de discursos, linguagens, lógicas, saberes tradicionais e sociabilidades que estão fora do Twitter ou nunca se enquadrariam nele. Se nem a Biblioteca de Babel daria conta do recado, imagine um aplicativo. (...) Elon é a única solução (para a empresa) em que confio. Confio na sua missão…

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Links da semana

Alô, tem alguém aí? Um salve para você que parou seu feriado, carnaval ou descanso para ler este e-mail. Esta é uma amostra grátis da Texto Sobre Tela de sexta, que vai para os assinantes premium. Se você quer ser um deles, clique aqui. Custa apenas R$10 por mês. Boletim do Fim do Mundo, o Otimismo Apocalíptico de Sidarta Ribeiro. Debate entre Bruno Torturra e o neurocientista brasiliense. É possível manter algum otimismo no meio da transição que vivemos hoje no planeta? Os dois citam o livro de David Graeber, The Dawn of Everything, recomendado aqui há algum tempo. Angeli se aposentou nesta semana. O cartunista foi diagnosticado com afasia. Comecei a ler HQ via Asterix e O Fantasma. Mas, definitivamente (para o bem ou para o mal), foi o trabalho de Angeli que mudou minha vida. Ele me apresentou ao mundo dos fanzines e da contracultura. Então, fica aqui meu respeito. ⊶⊷⊶⊷ Alan Moore ensina a escrever. O autor de Watchmen elaborou um curso de escrita para a BBC. Tem 6 horas e custa R$ 300. 🤔 ⊶⊷⊶⊷ É…

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Descriminalize o silêncio

Eu estava tentando performar, then I got high. Hoje, 20/04, supostamente é um dia celebrado pelas pessoas consumidoras regulares de maconha. Ainda que não seja uma delas, tive lá minhas experiências com a erva. Só não me lembro bem de quando. De qualquer forma, certa vez, estava nos EUA, num desses estados que permitem o consumo recreativo da substância. Neles, o capitalismo já assumiu o controle (tanto que se fala até em Silicon Valley da Cannabis). Adeus, romantismo. No meio de infinitas bugigangas e produtos canábicos questionáveis que uma loja oferecia, resolvi experimentar um refrigerante turbinado com THC. Parecia ser uma dosagem mínima. Então, sorvi o unguento de maneira bem casual. Na sequência, teria que jantar com quatro pessoas. O que eu não sabia era que duas delas já haviam comido quantidades bem maiores da erva. Ou seja, apenas um de nós estava “normal”. Para facilitar, vamos chamá-lo Bob. Preciso confessar o motivo de ter tomado o refrigerante: eu imaginava que a conversa durante o jantar seria extremamente tediosa. O problema não era exatamente escapar dela, mas de outro problema.

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Comentando Chunking Express

Como bem se sabe, traduzir títulos de filmes não é uma tarefa simples. “Amores Expressos”, em chinês é 重慶森林. Segundo o Dr. Google Translate, significa “Floresta de Chongking”. Em em inglês, ficou “Chungking Express”. No Brasil, uma aproximação (paulistana) seria algo como “Floresta do Edifício Copan”. Chungking se refere a um complexo de edifícios numa das áreas mais populosas de Hong Kong. Junta hotéis fuleiros, apartamentos minúsculos, áreas de convivência (estilo praça de alimentação), escadas rolantes e uma série de pequenos comércios, espremidos uns nos outros. O cheiro deve ser bem interessante. É um local muito usado por estrangeiros com baixa renda, geralmente paquistaneses e africanos. Naturalmente, é cercado por algum nível de criminalidade e de policiais (tanto investigadores à paisana quanto guardas uniformizados). Calhou de o diretor Wong Kar-Wai ter crescido no local. E é fácil entender porque Chungking aparece no título. Na verdade, ele está em todo lugar: o filme é uma investigação da sociabilidade que surge num espaço urbano tão particular e numa época tão estranha como os anos 1990. Em outras palavras, é um vislumbre de…

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