Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

O que eu faço quando me sinto impostor

Quando me sinto um impostor, uso a seguinte técnica: Em vez de ruminar sobre a frustração, investigo a expectativa. Por exemplo, digamos que você esteja numa crise de “quero ser artista, mas não consigo”. Você pode se perguntar: Ao responder essas questões, provavelmente, a frustração vai se dissolver. Você vai perceber o quão imprecisas são suas expectativas. Continuando no exemplo: Ser artista significa ter uma carreira? Quando nasceu a ideia de que um artista deveria ter uma carreira? Os artistas que você investigou tiveram uma vida que você gostaria de ter? A maioria dos artistas que admiro teve vidas muito piores do que a minha. E onde quero chegar com isso? No seguinte: por um lado, nossas expectativas são vagas, baseadas em falta de informação e inocência. Por outro, são muito precisas: muitos de nós queremos conveniência sem trabalho. Queremos fazer o que nos der na telha, sem frustrações ou estresse. Ainda ser pagos e admirados por isso. Compreensível. Mas não muito realista. Inclusive pras próprias celebridades, pros dropouts, self-made men e “gênios”, que, em geral, sofrem muito mais do que imaginamos. Fora que suas…

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Já nascemos com uma audiência pra entreter

Baseado numa foto de Valeria Zoncoll, via Unsplash. Hoje uma amiga me mandou um vídeo que me deixou intrigado. Ela teve uma filha há cerca de um mês. E, com todas as boas intenções do universo, pegou seu celular e filmou a bebê. No vídeo, só o rosto da criança aparece. Olhos gigantes, boca entreaberta e uma expressão de curiosidade. Os dedos da mãe surgem. Acariciam as bochechas da bebê: “dá um sorriso pro tio Eduf”. A criança parece não entender muito bem o que está acontecendo. Mas não se assusta. Após algumas cócegas, finalmente sorri. E minha amiga fica satisfeita. Bem-vinda ao mundo da performance em frente de telas. Hoje, o broadcasting vem antes da alfabetização. Ou melhor: antes mesmo de aprendermos a articular palavras. Em sua curta vida no planeta, nem deve ter sido a primeira vez que a bebê enfrentou uma câmera. Deve ter participado de vídeos pra familiares distantes. Ou, talvez, até faça lives diariamente pra alguns deles. Parece trivial, mas é um fenômeno e tanto. Muitos de nós vimos nossos rostos pela primeira vez num espelho. Ou…

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Consumo de ideias bloqueia a criatividade

Foto de Tim De Pauw, via Unsplash. Semana passada, Lalai Persson, da newsletter Espiral, comentou o seguinte: Talvez o nosso cansaço contínuo aconteça porque estamos o tempo todo consumindo conteúdo. Saio para dar aquela voltinha na rua? Coloco o fone de ouvido e ouço música, podcast ou até mesmo um audiobook. Vou tomar banho? Ouço um podcast enquanto isso. O que me lembrou do escritor e ativista Cory Doctorow. Há algum tempo, ele declarou que consome mídia o tempo todo. A ponto de usar fones de ouvido à prova d’água pra ouvir livros enquanto pratica natação. Fosse eu, acabaria me afogando na primeira virada olímpica. Também recebi um e-mail de alguém que vendeu sua empresa pra investir no capital financeiro. Ele vive de renda e passa seus dias consumindo conteúdo. Ainda assim, estava depressivo. Porque não conseguia mais escrever. Será que digeriu tanta informação que estava criativamente constipado? E como pode? Sempre me prometeram que, quanto mais informação eu consumisse, mais criatividade eu teria. No caso de Doctorow, até que funciona. O homem é uma máquina de publicar. Mantém uma newsletter diária, colunas em…

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Não aguento mais consumir cultura

“O robô vai ouvir o disco novo da Taylor Swift. Hoje eu só quero limpar uma calha!” Alguns dados impressionantes sobre o estado da cultura na nossa época: Isso sem contar posts em redes sociais, artigos em jornais, etc. Pelo jeito, não falta conteúdo neste planeta. Mas está começando a faltar gente e tempo pra sorver toda essa sopa primordial. Ao longo dos anos, a abundância de conteúdo nos “forçou” a delegar a seleção e o processamento de conteúdo pras máquinas. Ou seja, pra algoritmos. Assim, aos poucos, a cultura está virando coisa pra robôs. Produzimos com a ajuda da IA, consumimos usando aplicativos e também já pedimos pros computadores resumir, organizar textos, imagens e ideias. O que me lembra um pouco da série Star Wars, na qual Darth Vader vai ganhando poderes, mas se torna um robô. Luke Skywalker também se vê preocupado em perder sua identidade, quando precisa substituir um punho por uma prótese. (Imagine se o corte tivesse sido mais pra baixo.) Enfim, nesta semana, o Spotify anunciou que vai usar um modelo parecido com o do…

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Você é desinteressante?

Foto de Mike Bird, via Pexels. Outro dia, eu estava conversando com uma pessoa. É raro, mas acontece. E percebi que estava completamente entediado. Quer dizer, por dentro. Por fora, eu era mais simpático do que garçom de restaurante Michellin de 3 estrelas. É que a pessoa não soltava frases de efeito. Não me fazia rir. Não falava sobre filmes, música ou arte. Não contava histórias, não comentava notícias ruins, nem reclamava de trabalhar demais. Em situações como essa, geralmente, assumo o show e sufoco o interlocutor com nerdismos. Mas, dessa vez, consegui me controlar e me perguntei: por que, afinal, estou achando essa pessoa tão desinteressante? Minha conclusão? Por causa da midialização da vida. Explico. Desde criança, me habituei a consumir altos volumes de mídia. Filmes, TV, jornalismo, cinema e alguns tipos de artes. Foram muitas e muitas horas diárias de doutrinação mental voluntária, de uma verdadeira sucção cultural. Mas sucção de um tipo de cultura muito específico. Uma filtrada por uma lógica industrial. E que tinha dois lados: um mainstream e seu doppleganger, o tal underground. Por exemplo,…

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14 jeitos para recuperar a graça da Internet

Podcast em 1948, em foto de Sakari Pälsi. Nesta semana, viralizou o texto “Por que a Internet não é mais divertida”, de Kyle Chayka. Ele descreve uma sensação que se espalha rapidamente: a de que a Internet virou um fardo. Segundo o autor, as razões dessa mudança seriam: Eu mesmo escrevi algo nessa linha, alguns dias antes. E tendo a concordar com muitos dos argumentos de Chakya. Mas é importante considerar algumas outras coisas. Senão, as 14 sugestões que eu vou apontar não farão sentido. A Internet da Era dos Blogs tinha inúmeros problemas. Alguns muito parecidos com aqueles que enfrentamos hoje. Essa época criou as bases tecnológicas e discursivas da atual encarnação da desinformação, da manipulação e da sensação de violência verbal onipresente. Timelines, escrolagem, monetização, produção de conteúdo em ritmo industrial já existiam antes das redes sociais. Suas sementes são anteriores até à própria Internet. É uma lógica que veio do jornalismo comercial e da TV. Enfim, da cultura de massas. Isso precisa ficar muito claro. As redes sociais só exacerbam a lógica da indústria do entretenimento. Senão,…

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Onde eu perco mais tempo na vida

The Persistence of Memory, quadro de Salvador Dali. Pelo menos uma vez por semestre, tento pausar parte das minhas atividades pra fazer um Inventário de Gasto de Tempo (IGT). Basicamente é um exercício de se sentar e perguntar: onde, exatamente, gasto as minhas preciosas horas do dia? De modo geral, o meu dia se parece com um barco cheio de buracos no casco. Pequenos vazamentos se acumulam invisivelmente. A madeira vai apodrecendo e tudo começa a ranger. Instagram, YouTube e consumo de mídia são meus vazamentos mais frequentes. Esses vampiros sugam boas horas da minha semana. E não me devolvem muita qualidade. Meu grande problema é entrar no modo escrolador compulsivo. Existe uma fração de segundo na qual você “decide” puxar o celular e se deixar sugar para aquele universo. Esse é o portal inicial, a boca do vórtex, onde deveria estar escrito: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate. Ou melhor: “Abandonai toda esperança, vós que entrais”, como na Divina Comédia, de Dante Alighieri. Provavelmente, encontramos vários portais semelhantes ao longo do dia. Não só os digitais. É aquele momento de…

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Nós passamos o dia mentindo

Você chega a uma reunião. Nota um rosto conhecido. A pessoa te cumprimenta, animadamente. Parece saber detalhes sobre sua vida. Mas você não consegue se lembrar de onde a conhece. A interlocutora vai se expandindo. Agora seria totalmente rude pará-la e perguntar: “quem é você mesmo?” O que você faz? Ora, vai enrolando e fazendo perguntas estratégicas pra tentar conseguir mais informações. Pelo menos, as suficientes pra evitar uma gafe. Seu cérebro passa por um frenesi classificatório: a cada interação, testa uma hipótese sobre a pessoa, descarta outras e deduz uma continuação segura pra conversa. É um Tetris cognitivo. Ou mais ou menos como uma dessas caixas de busca com a função autocomplete. A pessoa te pergunta: “Lembra daquela situação?” Você diz que sim, mas está mais perdido do que o sujeito do filme Memento. Neste ponto, a sua porcentagem de mentiras brancas já está nos 60 ou 70%. Não só nas palavras, mas até nas expressões. Você nem está participando da conversa, realmente. Resolve um quebra-cabeça e tenta não passar vergonha. Ou acha um jeito de consertar as incoerências que…

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Ideias malucas para lidar com a desinformação

Toda guerra física também é guerra de informações. Isso está cada vez mais claro na atual situação em Gaza. As redes sociais foram tomadas por conteúdo falso, imagens tiradas de videogames, influencers que fingem cobrir o conflito de perto e todo tipo de conteúdo sensacionalista, buscando popularidade e monetização. Ao conviver diariamente com esse fluxo de informações, criamos três problemas adicionais: Todos nós mais ou menos sabemos disso. Mas essa também é uma oportunidade pra abandonar alguns modelos de jornalismo que, ao longo do século 20, ajudaram a criar as bases dos atuais problemas das redes sociais. A seguir, vamos investigar alguns deles. No mundo ideal, deveria existir uma maneira clara de distinguir jornalismo de entretenimento. Algo realmente chato. Antes de começar a assistir uma cena de bombardeio, o consumidor veria um disclaimer, quase que um contrato: E um botão: “sim, eu aceito me entreter com a desgraça alheia”. Ou algo ainda mais impensável: Caso a pessoa clique em b), opções relevantes surgiriam, como contatos de entidades assistenciais locais, artigos com análises mais substanciais da situação, etc. Ou seja: algo que ajude. Não que…

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Uma crise de comunicação

Imagem: Midjourney. No domingo, contei que, depois de passar invicto por 27 anos de Internet, caí num golpe. Era um anúncio do Instagram, que me pegou num momento de escrolamento acéfalo. A boa novidade é que consegui recuperar o dinheiro. A ruim é que continuei matutando sobre o assunto. É que esse estilo de fraude de Instagram revela um ponto de fragilidade bastante interessante na cultura contemporânea. A lógica é a seguinte: ao longo do século 20, fomos nos acostumamos a saber cada vez menos sobre as coisas – e ideias – que usamos no cotidiano. Todos os processos de produção e de consumo ficaram tão complexos, que só uma quantidade massiva, exponencial e crescente de ignorância e descaso pode nos manter funcionais. Por outro lado, a informação virou indústria do entretenimento. Assim, gostamos de pensar que conhecemos profundamente alguns assuntos. Pelo menos, o suficiente para ter opiniões e nos separar em grupos identitários. É assim que surgem as subculturas e as estéticas. Os “nerds” em certos games, em raw denim japonês (um tipo de jeans), em literatura, em relógios digitais vintage, etc., etc. No…

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