Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Migração da pesada

Parece que o tema da semana é a dificuldade com as transições. No governo, no clima (o inverno também não quer passar a faixa) e, claro, no Twitter. Depois que Elon Musk assumiu o poder, houve uma migração em massa para o Mastodon, o que vem causando alguns problemas para os usuários antigos dessa plataforma. Primeiro, porque a maioria dos servidores do Mastodon não é financiada pela Big Tech. E, com um súbito aumento de tráfego, começa a cair e fica lenta. Segundo e mais importante: os migrantes do Twitter levam seus hábitos e expectativas para o novo ambiente. "Como faço para me engajar na gameficação do meu perfil? Onde estão os contadores de usuários e de engajamento? Como posso influenciar o algoritmo?" Ooops. Desculpe-me. No fediverse as coisas são um pouco diferentes. Por enquanto. Uma das possibilidades de interface do Mastondon. Na verdade, aplicativos como o Mastodon foram criados para ser uma alternativa mais saudável (e até mais tranquila) às redes sociais da Big Tech. Sem gamificação. Sem Corporações Babás tentando infantilizar o usuário, mastigando a papinha tecnológica até…

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Devolva minha honestidade

Representação de Loki, o deus dos golpistas. Me engana que eu gosto. Esse é o perfeito título de um episódio sobre desonestidade do podcast de Aline Valek. Nele, a escritora fala sobre bandidos folclóricos, espertinhos, golpistas, de Mazzaropi e Macunaíma até Loki, o deus da trapaça. A ênfase vai para o banditismo individual, para o estilo de vida. Mas há muitos outros aspectos desse assunto. Por exemplo, o filosófico: até que ponto é possível ser honesto? Considerando que somos obrigados a usar a linguagem, cheia de imprecisões e vieses ocultos, não estaríamos apenas condenados a refinar constantemente a percepção do que causa mal aos outros? O engano e o autoengano são ferramentas de aprendizado. Já a honestidade está mais para um compromisso existencial, uma aspiração. Não é uma lista de procedimentos coerentes e infalíveis. Há também o viés cultural, civilizatório. Basicamente, significa que sabemos que seremos enganados em quase todas as nossas relações -- especialmente as econômicas. Mas ok. Daremos um jeito. Essa é uma espécie de ignorância tática, um contrato de tolerância mútua. Pense nos contratos que "aceitamos" ao…

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Vai liberar ou prender?

Transcrição do vídeo # Então você está tentando usar um novo aplicativo. Antes de se cadastrar, é sempre bom entender quais são os valores por trás daquela tecnologia. Comece perguntando o seguinte: A empresa é monopolista? Tenta centralizar todas as suas atividades e controlar tudo o que faz, de modo que você nunca saia daquela plataforma? O que ela promove mais? O empoderamento do usuário por meio do aprendizado? Ou esconde toda a complexidade debaixo do capô para deixar o usuário ignorante, preguiçoso e dependente? A empresa estimula o surgimento de comunidade saudável? Ou estimula a competição e a gamificação, oferecendo estatísticas, metas de "sucesso" que você precisa atingir, etc. Quanto custa o serviço? Como essa empresa faz dinheiro? Você recebe um serviço gratuito, mas alguém paga a conta no seu lugar? Quem paga? Funcionários sem direitos? Artistas? Ou você mesmo, de algum outro jeito escondido? A empresa te oferece ferramentas rígidas, que te impõem um jeito único de trabalhar? Ou ela oferece ferramentas claras para você escolher e te ajuda a decidir qual será o seu próprio método de…

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IA Generativa: o começo do fim da Internet?

Transcrição do vídeo # Um dos assuntos mais comentados agora na área de tecnologia é a popularização da Inteligência Artificial Generativa. São aqueles programas como o DALL-E, Stable Diffusion, Lex, entre outros, que usam enormes bancos de dados e computadores com poder de processamento gigantesco pra criar imagens e conteúdo via Inteligência Artificial. Isso vem criando a possibilidade de cortar custos na hora de criar ilustrações, deixar as máquinas criarem posts e vídeos na internet, sem que os criadores precisem gastar muita massa encefálica. Por outro lado, isso leva ao surgimento de mais fake news e deep fakes, desenvolvidas para atingir nichos cada vez mais específicos. Algumas empresas coletam dados da sua navegação e dos seus hábitos na Internet e criam um conteúdo perfeito para influenciar a sua cabeça. Esse é um perigo para a democracia, claro. E pode gerar uma série de outros problemas. Basicamente, não poder confiar em mais nada do que é dito na Internet. A Inteligência Artificial tem um poder inalcançável de produzir conteúdo, certo? E, com o tempo, vai surgindo tanto conteúdo que seria impossível…

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Bombástico

Mr. Lover, Lover, Shabba. Momento histórico. A Microsoft vai substituir de vez a marca Office pela 365. Essa revolução foi anunciada em 12/10, por Satya Nadella, CEO da empresa, na abertura do Ignite. Dei-me o trabalho de assistir à sua apresentação por dois motivos: Vamos nos concentrar no item 2 por hoje, obrigado. Segue alguma semiótica de botequim. Quais são as expressões mais usadas por Nadella (quase escrevo Nutella)? “Massivo”, “Estado de arte”, “mais rápido”, “world class”. Hoje em dia, são termos tão comuns que sequer os estranhamos. Mas eu não conseguia parar de pensar no clássico Mr. Loverman, de Shabba Ranks. “Ela me dá um toque nas costas e diz que sou… bombástico”. Essa música deveria ser a trilha oficial das conferências de tecnologia. O CEO: “Lançamos o aplicativo que vai resolver o problema da segurança”. E a platéia: “Shabba!” Daí, você abre seu Microsoft Teams. O bombástico vira meia bomba. A realidade é mais complicada. Você percebe que, ao usar um sistema completamente integrado e monolítico no trabalho, pode acabar limitado e engessado. Começa a questionar os custos…

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Fim de festa

Exemplo da estética Angelcore, popular na Internet. Tenho um certo fascínio pelo fim das coisas. Civilizações, tecnologias, bandas, relacionamentos, movimentos sociais. Se a profissão existisse, eu seria um "entropiologista", ou "finólogo". É que, assim que algo é criado (ou percebido), já começa a se deteriorar e corromper. Parece óbvio. Mas não é incrível? Alguns fenômenos mudam rapidamente, como que vaporizados da cultura. One hit wonders, paixões, certas modas. Outros apenas parecem existir, mas, quando analisados de perto, fragmentam-se cada vez mais. Punk(s), anarquismo(s), "pensamento oriental". Quase não há como agrupá-los seriamente. Há fenômenos que parecem se transformar lentamente. Degeneram-se de maneira enganosa, às vezes até festiva, disfarçada de sucesso. E, então, mal percebemos a dissolução das suas premissas. Também há aqueles com morte falsa, no melhor estilo barata encurralada. Eles desaparecem por um tempo, se escondem e, aos poucos, surgem novamente -- como louça, impostos, fungos e fascismo. Os fenômenos culturais se transformam constantemente até ficarem irreconhecíveis. Porém, por medo, ignorância, apego ou conveniência, tentamos preservá-los, reconstruindo narrativas e fingindo que nada está acontecendo. Até que surge o "ponto de…

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Necrotecnologia

Quem são os maiores beneficiários da confusão das eleições do Brasil, em 2022? As corporações de social media. A luta para derrubar Jair Bolsonaro força os adversários a adaptarem seus discursos à linguagem de ódio, escárnio e desinformação que, há décadas, vem sendo cultivada e explorada pela big tech. Enquanto tentamos livrar o país da necropolítica, acabamos por fortalecer a necrotecnologia. Se não conseguirmos sair desse loop, vamos acabar (ainda mais) dependentes da big tech para exercer a política. As redes sociais já sequestraram parte do discurso e logística da democracia. Aos poucos, vão alterando até os nossos conceitos sobre ela. Promover a indie web virou uma necessidade civilizatória, até. O texto acima saiu numa edição fechada da minha newsletter. Foi escrito no melhor estilo digital garden (aprender em público). Necrotecnologia é uma ideia que preciso desenvolver melhor. É necessário descrever como as redes acabam empregando a lógica do "deixar morrer", central ao pensamento de Achille Mbembe, que popularizou o termo necropolítica.

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Diário de um eleitor

Trem da CPTM, na periferia de São Paulo. São Paulo, 02 de outubro de 2022, 8 da manhã. //Plim.// Aqui estou mais um dia, sob o olhar entediado do vigia. //Plim.// Diferentemente do clássico dos Racionais MC's, o guarda era apenas o da CPTM. Eu partia de Jundiaí para votar em Pirituba – bairro do noroeste de SP onde cresci e vivi por 28 anos. Apesar de morar há 15 na Serra Gaúcha, nunca transferi minha zona eleitoral. Alguma parte de mim não aceita romper o vínculo com a periferia de SP. No trem, meu narrador compulsivo interno queria transformar a votação num road movie. Ou melhor: rail movie. Mais uma vez eu teria de escorrer pelas veias ferroviárias abertas daquele pedaço de América Latina. Novamente observaria a velha dinâmica entre homem e natureza. O mato tentando retomar o espaço roubado pela CPTM. As árvores abraçando os cabos de eletricidade. Fungos criando padrões no concreto. Mais um pedaço de plataforma corroída pelo tempo. A dinâmica humana também surge nas incoerências de arquitetura e design. As estações são um testemunho do…

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Enlarge seu texto

Não sei se lhe contei, mas estou escalado para participar de um evento para quem lê e cria newsletters. Chama-se O Texto e o Tempo. Programação completa aqui. Um dos temas que devo debater é essa coisa do chamado “textão”. Supondo que exista um “textículo”, mais curto e dinâmico. Em tese, o leitor industrializado prefere a concisão às argumentações mais elaboradas. Repare como esse tipo de distinção só funciona num ambiente cognitivo pós-industrial, o universo da TV, do marketing e do jornalismo. Da produção contínua, distribuída em periodicidades. Medir textos pelo número de carácteres (ou por sua aparência mais ou menos carregada quando vista numa interface), provavelmente, seria algo estranho para um monge copista medieval. Ainda que muitos entendessem bem de design de livros. Imagino um deles, com os dedos pretos de tinta, iluminado por uma vela solitária, se virando para um colega de bancada e dizendo: “esse livro é muito longo, me passa aquele de aforismos”. Não quero romantizar aqui. Mas ter acesso a um texto, extrair uma exegese, degustá-lo, desenhar todas as ligaduras das letras, tudo isso indicava…

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