Site do jornalista e roteirista Eduardo Fernandes

Quem é mais esperto do que o ChatGPT?

Responda rapidamente: qual é a diferença entre um texto do ChatGPT e o de um humano? Fácil: a IA não sabe o que diz, apenas prevê a próxima sentença, baseada em padrões e estatísticas. Você consegue garantir que nunca produziu um texto usando o mesmo método? Ou melhor: você sempre sabe do que está falando? Consegue captar os fractais de interdependências que surgem à cada frase? Provavelmente, não. E é por isso que existem os exegetas, os críticos literários e essa prática quase em desuso hoje em dia, a releitura. Seguir em frente sem entender o que se faz é um dos nossos hábitos mais naturais. Segundo neurocientistas, usamos as predições e apostas feitas pelo Default Mode Network até para andar. O mestre budista Jigme Lingpa dizia algo como “tudo o que pensamos é generalização, tudo o que dizemos é vago”. É uma das principais características da linguagem: imprecisa, mas funciona, gera resultados e consequências. É um jogo, ao mesmo tempo, perigoso e prazeroso. Pense em como as conversas phaticas (small talk, conversa fiada) mudaram nos últimos anos. Se, antes,…

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Bonzinhos e maldosos

Já faz algum tempo que estou escondendo uma coisa. É, escondendo. Deixe-me contar por quê. Quando uma newsletter cresce, o público se diversifica. E parte da diversão se dissipa. O autor precisa se explicar mais, evitar piadas herméticas e deixa de expor parte dos seus gostos. Tudo por medo de engatilhar leigos e causar algum sofrimento desnecessário. Não que eu faça sexo com alienígenas ou algo assim (há controvérsias). Não lavo dinheiro. Não conspiro com militares. Não escondo cadáveres debaixo da cama. Mas, enfim, nunca falei sobre esse assunto. Antes de revelá-lo, você viu a série Treta, da A24 para a Netflix? É uma comédia. Mostra o catastrófico encontro de dois tipos de descendentes de asiáticos, que moram nos EUA. De um lado, uma empresária, filha de chineses, bem-sucedida, que dirige um carro de luxo. De outro, um coreano, construtor, frustrado, sem grana e usando uma pick-up velha. Os dois se envolvem numa briga de trânsito, que vira uma perseguição cada vez mais obsessiva. Viram arqui-inimigos. Por meio da chinesa, a série critica o ambiente de positividade tóxica de classe-média,…

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A nostalgia já não é a mesma

Hoje eu pensei em compartilhar um texto meu das antigas. A ideia era espiar embaixo da pia e ver se havia alguma sujeira para limpar. Ou abrir aquela caixa e redescobrir uma roupa esquecida. Mas, ao fuçar nos meus arquivos, tive outra experiência: não reconhecia o material. Sério. Nada ali parecia meu. Espero que isso não seja indício de alguma doença. Você, leitor(a), que, visto daqui, me parece ser uma pessoa normal, por favor me explique: o que acontece? O autor do texto não consegue mais entendê-lo. Digo, se conectar com o subtexto, com o substrato emocional por trás dele. Isso tem cura? O mesmo acontece com as diferentes camadas geológicas da tecnologia: vejo uma foto do primeiro iMac e sinto uma certa nostalgia. Mas não parece que usei um desses computadores. Soa a ficção. Será que vi num filme? Pior: às vezes, sinto a mesma coisa em relação a fenômenos contemporâneos, tipo Twitter, o Notes do Substack e, agora, até mesmo o Mastodon. Para mim, microblogging virou uma espécie de calça bag: não sei mais se é passado ou tendência. Ainda…

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E se a vida fosse uma timeline?

Outro dia escrevi que a vida não é uma timeline. Mas e se fosse? Resolvi investigar, começando pelo assunto mais rejeitado pelos assinantes de newsletters: sexo. Mas garanto que este será o texto menos explícito do universo. Até código em COBOL é mais quente. Já se descadastrou? Não? Então vamos lá. Você está numa festa. Começa a receber notificações no celular. Plim. A garota do fim do corredor está interessada em você. Plim. Oops, tem mais uma te olhando, à esquerda. Plim. Dez notificações não lidas. Ou você acertou no visual, ou o bar está vendendo bem demais. A lógica aqui não é a de apps como o Tinder. Não é preciso nem “dar match”. As pessoas vão simplesmente aparecendo à sua frente, selecionadas por algum algoritmo hermético. Se você assistiu a Tom Cruise beijando Jennifer Connelly, então deve gostar de morenas com olhos claros. Você não as conhece. Mas elas chamam sua atenção continuamente, num fluxo contínuo de notificações. E você até pode conversar com alguém, mas só por 10 segundos. Em geral, você usa apenas 5. Ou clica no…

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A vida não é uma timeline

A vida não é uma timeline. Quer dizer, quem sou eu para saber o que é a vida? Mas agora já foi. Só sei que ela não é assim — para soar como um personagem de Ariano Suassuna. Não é uma sucessão linear de acontecimentos que superam os anteriores. Tecnologias e ideias de diferentes épocas convivem e transformam-se constantemente. Produtos culturais deixam múltiplos rastros e fantasmas. Coisas esquecidas voltam à moda. Ou nunca morrem para certos nichos. Por exemplo, o Deftones (foto acima). Graças ao TikTok, virou tendência entre a geração Z. Quem diria. A banda foi famosa, mas de segundo escalão, na era do surgimento do nu-metal. Depois, voltou ao underground por pelo menos uma década. Aliás, tenho me surpreendido ao conversar com algumas pessoas da geração Z. Elas conhecem minhas referências culturais mais obscuras, se interessam por atividades que definiram minha vida (zines, por exemplo), são críticas à Internet e escrevem ensaios como esse, de Rayne Fisher-Quann. Parte da geração Z se interessa pela X, que, por sua vez, cultuava duas áreas conflitantes dos anos 70 (punk e hard…

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Introdução à toscopia

Vamos fazer um exercício futurológico. Uma espécie de utopia cheia de cicatrizes e remendos com durepox. Quase como no livro (e série) Estação Onze, de St. John Mandel. Primeiro, vamos aceitar os seguintes cenários: Talvez nosso cotidiano fosse inseparável de certo humor, bricolagem, sujeira, habilidades manuais e alguma abstração (quer dizer, ideias e objetos malucos que não pareceriam ter utilidade imediata). Mais para fanzine do que para livro de mesa. Como seriam esses criadores e desenvolvedores de tecnologias? Eu arriscaria algo como o escultor Tom Sachs, os artistas plásticos Vik Muniz, Mark Bradford, El Anatsui, Henrique Oliveira, Kaz Oshiro, o cineasta Ed Wood, a banda Devo. E por aí vai. Hoje, criadores como estes vivem num universo paralelo de ter que definir o que é arte e em que contexto deve ser consumida. Mas imagine se tudo isso fosse esquecido, se galerias, prestígio, preços e rankings fossem coisas do passado. Se a tosquice imperasse universalmente. Quer dizer, de certa forma, já impera. É uma espécie de força da natureza. Você relaxa um segundo e a tosquice se instaura em todos os cantos. A sociedade industrial do pós-Segunda…

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Negócios inacabados

Bill Gates steampunk, via Lexica, a desenhista de IA. Recentemente, fui convocado para organizar e limpar um galpão de ferramentas. O local é do tamanho de meio campo de futebol, com uns três ou quatro metros de altura, repleto de furadeiras, parafusos, motosserras, canos, cabos e peças que pareciam restos de algum foguete da Nasa. O espaço não recebia uma faxina há 10 anos. Passado o espanto inicial com a complexidade da tarefa, baixou em mim a Marie Kondo God Mode. Eu queria entrar em cada canto, etiquetar cada gaveta, tirar todas as manchas do chão, reagrupar todas as partículas do Big Bang. E assim segui, até que, muitas caixas depois, chegamos à hora do almoço. Merecidamente, meus companheiros de trabalho abandonaram seus postos. Mas eu não conseguia: “Só mais uma prateleira! Tem mais um prego solto ali”. Praticamente tive que ser sequestrado para aceitar fazer uma pausa. Foi aí que percebi porque nunca consegui ser um romancista. Claro, tem a falta de talento. Ouvi dizer que isso influencia. Mas, essencialmente, meu problema é ter baixa tolerância para trabalhos inacabados,…

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SXSW e o colonialismo Tech

Você, brasileiro, passou seus anos de formação consumindo cultura norte-americana. Parte dos produtos que usa diariamente ou têm nomes em inglês, ou, pelo menos, vêm escritos na língua. Até suas camisetas têm frases (meio que sem sentido) no idioma. Seu caminho espiritual é a cultura pop dos EUA. Você gasta muito tempo e dinheiro com ela. Seus valores, objetivos, prazeres e dores são baseados nela. Sua ideia de transcendência é ser reconhecido como inovador e disruptivo. Ou melhor, vencer na hustle culture. E, claro, não viver sempre ansioso por conta de dinheiro. Você praticamente não lê mais livros, passa o dia pulando de um micro fragmento de informação para outro, todos gerados em redes sociais norte-americanas ou pela imprensa de entretenimento tecnológico, a Tech Pop. No máximo, usa um TikTok, que é chinês. Lê sobre inovação, sobre ferramentas “revolucionárias”, carros elétricos, mas nem pode sair na rua com aquele seu novo iPhone, por medo de ser roubado — ou morto. Em alguma tela, vê que o crime organizado causou caos numa cidade do norte do país. Então, algum diretor de…

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O guru de Malibu

Estou lendo The Creative Act: A Way of Being, do prestigiadíssimo produtor musical, Rick Rubin. Rick fundou o selo Def Jam nos anos 1980 e foi um dos responsáveis pela popularização do hip-hop. Desde então, trabalhou com muita, mas muita gente diferente: de Slayer a Johnny Cash e Red Hot Chili Peppers. É tido como um Midas contemporâneo: onde toca, surgem discos de Platina. E se especializou em reciclar artistas em baixa. Mas agora ele assumiu de vez o tom de guru de Malibu (onde fica seu estúdio, Shangrila). Seu livro é uma mistura de ensaio com poesia e autoajuda. Se você esperava um compêndio de histórias de bastidores e insights das suas relações com músicos, vai se decepcionar. Mas, em si, até que The Creative Act é interessante. Particularmente se você gosta de Catching The Big Fish, do cineasta David Lynch. E de frases um tanto herméticas, que podem ser decodificadas em momentos de busca por inspiração. Não chega a ser um Oblique Estrategies, de Brian Eno, mas tem um pé nesse estilo de comunicação. Basicamente, Rubin pega algumas…

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Aprendendo a se esconder

É a lei do Oeste: todo buraco aberto um dia precisará será fechado. Foi o que fiz, semana passada: cobri um deles. Eu parecia um coveiro. Trabalhava no meio do frio e da garoa, com uma pá velha e torta. Cercado de árvores gigantes, coberto de lama e usando roupas de trabalho azuladas. Criado e desconfigurado durante o cinismo dos anos 1990, não pude evitar a lembrança do clipe de “My Name Is Mud”, da banda californiana Primus. Meu companheiro de trabalho, milennial, deve ter achado estranho quando eu fazia cara de psicopata e repetia: “mmmm, mmm, Mud”. Mas, era uma piada específica demais para explicar. O Primus chegou a ser motivo de chacota nos anos 2000. Era considerada uma banda cabeçuda e complexa, especialmente por conta do seu baixista / vocalista virtuoso, Les Claypool. Mas eu sempre gostei do caos teatral dos seus discos. Especialmente da versão para Tommy The Cat, de Tom Waits. Na verdade, a banda é o oposto do cabecismo: é pura folk music, uma brincadeira com o estilo rural, “homem comum” dos EUA. Pescadores, fazendeiros,…

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